São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2006

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MANUEL DA COSTA PINTO

Horto de estrabuleguices

Dois autores têm capacidade infernal de reinventar a linguagem literária a partir de escombros do vernáculo

EM "O Mamaluco Voador", de Luiz Roberto Guedes, o padre Manuel da Nóbrega escreve a um colega de Goa, contando as desventuras de um jesuíta mestiço que, como "servo de Sathanaz", empenha-se em voar na "machina volatrix" concebida por herege luterano.
Em "Catrâmbias!", de Evandro Affonso Ferreira, a protagonista é uma "velhota zuruó bilontra" que repassa suas lembranças enquanto come "jabuticabas mnemônicas" na "cacimba anômala", na "Stultifera Navis", no "horto de estrabuleguices" -ou, mais simplesmente, no manicômio. Em comum entre os dois autores, uma capacidade infernal de reinventar a linguagem literária a partir de escombros do vernáculo. Entretanto, são planos diferentes de pesquisa e criação.
Guedes escreve de cabo a rabo num português supostamente quinhentista, no qual há espaço para uma etimologia macarrônica que reforça o efeito paródico dessa novela sobre os desastres da catequese: "Vejo ho gentio christianizado muy escandalizado dos christãos (....) e hos mais perdem sua ynclinação naturalmente alegre, quedando-sse todos muy "ajururu" -palavra brasil que senefica malencólico, desconsolado".
Ferreira reedita a prática, presente em livros anteriores, de exumar palavras em desuso e colocá-las na boca de personagens que, assim, se transformam em mortos-vivos entoando uma ladainha monomaníaca, cheia de interjeições (como a do título), adjetivos vetustos e referências ocultas a filósofos e escritores.
Ambos correriam o risco de cair num virtuosismo vazio, não houvesse razão para essas experimentações. Em Guedes, o anacronismo lingüístico serve de espelho para um outro anacronismo: o mito positivo da miscigenação étnica brasileira, da qual o mamaluco é a caricatura.
Já Ferreira introduz o problema na própria narrativa, retomando do livro "Zaratempô!" o procedimento de citar dois professores da Unicamp (de fato existentes) que não conseguem ir além da análise estilística. Fazendo-se de ventríloquo de um deles, o narrador de "Catrâmbias!" define seu livro como "esforço de construção e experiência de uma "ars moriendi", de uma arte de morrer" que, "se não serve para vencer a morte, basta para saber perdê-la com coragem, entregando-se destemidamente a seus afetos".
Qualquer leitor razoável apreciará aqui o humor involuntário de uma crítica encanecida, pecorina -que, buscando sentido edificante nessa parafernália textual, recorre a um latinório "kitsch" ridicularizado pelo próprio livro. Na verdade, "Catrâmbias!" arrasta questões existenciais e memórias sentimentais, leitores, críticos e a própria literatura no turbilhão desse diálogo de alienados, tudo corrompendo com seu riso nervoso e sua língua esquizofrênica.


O MAMALUCO VOADOR    
Autor: Luiz Roberto Guedes
Editora: Travessa dos Editores
Quanto: R$ 25 (144 págs.)

CATRÂMBIAS!    
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (80 págs.)


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