São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2006

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Crítica/coletânea

Bastidores do poder são ponto alto de crônicas de José Sarney

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com o dia-a-dia certamente atribulado de um político de alto coturno, o senador José Sarney não deixa de abrir espaço na agenda para a atividade de que confessadamente mais gosta: escrever. Problemas de saúde, viagens internacionais, crises públicas, até mesmo a morte da mãe, nada é desculpa para não escrever. Ao contrário, tudo é tema para a crônica que ele publica às sextas-feiras na página 2 da Folha.
"Semana Sim, Outra Também" é uma reunião dos textos escritos em quase quatro anos, entre meados de 2002 e o final de 2005. É um período rico em acontecimentos que, a começar por uma eleição presidencial, convidam à reflexão. Sarney não foge da raia, mas é claro que a perspectiva do cronista não poderia ser diferente da do homem público. Assim, não surpreende que desaprove Fernando Henrique Cardoso e louve Lula.
O tucano é alvo favorito. A declaração de FHC de que o Brasil iria "virar uma Argentina" em caso da vitória de Lula em 2002 é glosada em pelo menos três crônicas. Quanto a Lula, sai engrandecido, às vezes à custa da coerência. Ao elogiar sua biografia, "um patrimônio do país", Sarney a relaciona à "igualdade de oportunidades", em que ele próprio, pelo que se depreende de textos em que aponta mazelas sociais, parece não acreditar com convicção.
De um modo geral, Lula é tratado com carinho, com direito até a metáforas hiperbólicas. Quando chorou ao ser diplomado presidente, foi brindado com estas palavras: "Suas lágrimas vêm do sofrido povo nordestino, [...] cuja dor começa naquilo que lhe é negado pela lágrima dos céus: a chuva".

Humor
Sarney aprecia associações inusitadas. Com o humor dos hipocondríacos assumidos, o cronista, às voltas com um cálculo renal, como que levado ao delírio pela dor, junta todas as pedras que lhe vêm à mente, daquela que Deus teria usado para criar o mundo à que estava no meio do caminho do poeta Drummond, passando pelas pedras do ministério, que Lula sofreria para mexer.
Um ponto alto do livro são os bastidores do poder. Algumas reminiscências estão incorporadas à história, como a incerteza institucional que antecedeu sua posse como presidente em 1985, durante a doença de Tancredo Neves. Outras contribuem para o anedotário contemporâneo, como a viagem no Aerolula para o funeral do papa João Paulo 2º, com a presença de FHC e Itamar Franco. Na chegada, sua mulher quer saber da conversa no avião. "Não teve", ele responde. "Como? Com tanta gente inteligente!." "Justamente por isso. Todos jogaram na retranca."
"Semana Sim, Outra Também" talvez tivesse se beneficiado de uma seleção que eliminasse os textos mais circunstanciais. De qualquer maneira, mesmo as crônicas que exigem uma contextualização para serem lidas com uma defasagem de anos ajudam a compor o painel de um privilegiado observador e partícipe da história.


OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (Publifolha, em cinco volumes).

SEMANA SIM, OUTRA TAMBÉM - CRÔNICAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO    
Autor: José Sarney
Editora: ARX
Quanto: R$ 44,90 (448 págs.)


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