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FERNANDO GABEIRA
Notas de um brasileiro voador
Há coisas às quais não me adapto. A falta de informações corretas nos aeroportos é uma
DE CERTA forma, vamos nos
acostumando aos dissabores
do atraso. Minha capacidade
de leitura cresceu. Outro dia, escapei
de um assalto na Linha Vermelha.
Meu celular quebrou e, com os bônus que tinha, comprei um desses
que enviam e-mails. Havia vários
outros no avião. Estamos virando
um Blade Runner tropical. Se houvesse o assalto, algumas áreas do Rio
amanheceriam com os bandidos
trocando e-mails nos aparelhos negros, coloridos pelos ícones.
Essa sensação de um mundo a um
só tempo tecnológico e miserável eu
já tinha em Copacabana, sobretudo
diante das lojas de carros importados onde dormem mendigos.
Minha capacidade de adaptação é
grande, tanto que, quando me negaram amendoim no avião, nem sequer lembrei o tempo em que ofereciam jantares com opções vegetarianas. Disse: pelo menos estamos
voando, só com uma hora de atraso.
Mas há coisas às quais não me
adapto. A falta de informações corretas nos aeroportos. O tratamento
frio que dispensam aos viajantes. Sei
que há uma tendência para a rispidez em algumas companhias aéreas,
sobretudo por causa da arrogância
colonial que se infiltra no coração
dos mais limitados funcionários.
Essa tendência nasce dos próprios
governos, que tendem a nos infantilizar e contar suas histórias pela metade. Você deixa seu trabalho lutando contra adeptos do governo que
tentaram comprar um dossiê e
mentem para se proteger. Você olha
na tela do aeroporto, notícias sobre
o Iraque, uma guerra montada na
mentira de que Saddam tinha armas
de destruição em massa. E vê que a
polícia londrina foi absolvida não só
de matar Jean Charles mas também
de mentir sobre isso.
O tempo passa, você constata que
perdeu uma hora. Ninguém informa
nada. E você até aceita o atraso, desde que haja um pouco de cuidado.
Essa história de atraso vem se arrastando há algum tempo. Mesmo antes do desastre da Gol, constatei que
não era possível fazer agenda como
antes. Cancelei uma viagem à Amazônia, onde haveria uma discussão
ecológica. Fiz minhas contas e percebi que perderia três dias.
Os dissabores, para mim, realmente começaram a ficar visíveis
após o colapso da Varig.
Viajo sempre nas primeiras filas.
É nelas que vão também as pessoas
doentes que, às vezes, dependem de
soro para se alimentar no caminho.
Vê-las no desconforto do atraso, sofrendo o cansaço típico dos lugares
públicos, é triste.
Nosso problema é a segurança, dizem as autoridades diante do atraso.
Por que não ampliar a preocupação
e dizer que os problemas passam
também por cuidar melhor das pessoas nesses períodos de crise?
Os governos tendem a ser defensivos. Toda a sua energia se concentra
em criar um escudo contra as críticas. Os da esquerda, em certos casos,
são piores, pois revestem suas trapalhadas de um verniz humanista, vivem chorando nas tribunas. Seus
partidários na internet dizem: agora
sim, com a crise aérea, a burguesia
está sofrendo uma fração do que sofrem os pobres nas estradas de terra.
Cerca de 14 milhões de pessoas
viajam nos aviões brasileiros. A democracia em progresso já, há muito,
ampliou o espectro dos usuários.
Com uma barrinha de cereal e um
suco de manga, elas cruzam o país.
Também a carga, passageira silenciosa, voa para todos os extremos,
levando, em certos casos, produtos
essenciais para os pobres. Às vezes,
essenciais como um fígado, um rim.
O raciocínio do governo é este:
tratar cada dificuldade como um caso isolado. Hoje, os controladores,
amanhã os radares, depois o aparelho de comunicação, depois de amanhã, quem sabe, uma pane elétrica.
O dia em que compreenderem
que há um problema de sistema, que
é preciso fazer mudanças que vão
desde o salário dos controladores e a
revisão do equipamento até a mudança de modelo de gestão, as coisas
certamente vão melhorar.
Estamos longe. É um governo
acuado pela incompetência e pelas
ondas de corrupção que ameaçam
engolfá-lo. Sempre na defensiva: seu
problema não é fazer, mas sobreviver. Quando revejo o passado, agendas que contavam com a precisão
nos vôos, percebo que perdi meu nível de produtividade. Leio mais. Mas
acho que, desse consolo, até os prisioneiros desfrutam.
Blade Runner tropical. Capitalismo selvagem com discursos e choro
de socialismo moreno. A única coisa
que me conforta é que essa é a escolha da maioria e só com paciência
vamos convencê-la de outras opções. Restaram, de meio século de
lutas: a barra de cereais, a democracia e um bom livro para cruzar os
céus do meu país.
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