São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Notas de um brasileiro voador

Há coisas às quais não me adapto. A falta de informações corretas nos aeroportos é uma

DE CERTA forma, vamos nos acostumando aos dissabores do atraso. Minha capacidade de leitura cresceu. Outro dia, escapei de um assalto na Linha Vermelha. Meu celular quebrou e, com os bônus que tinha, comprei um desses que enviam e-mails. Havia vários outros no avião. Estamos virando um Blade Runner tropical. Se houvesse o assalto, algumas áreas do Rio amanheceriam com os bandidos trocando e-mails nos aparelhos negros, coloridos pelos ícones.
Essa sensação de um mundo a um só tempo tecnológico e miserável eu já tinha em Copacabana, sobretudo diante das lojas de carros importados onde dormem mendigos.
Minha capacidade de adaptação é grande, tanto que, quando me negaram amendoim no avião, nem sequer lembrei o tempo em que ofereciam jantares com opções vegetarianas. Disse: pelo menos estamos voando, só com uma hora de atraso.
Mas há coisas às quais não me adapto. A falta de informações corretas nos aeroportos. O tratamento frio que dispensam aos viajantes. Sei que há uma tendência para a rispidez em algumas companhias aéreas, sobretudo por causa da arrogância colonial que se infiltra no coração dos mais limitados funcionários.
Essa tendência nasce dos próprios governos, que tendem a nos infantilizar e contar suas histórias pela metade. Você deixa seu trabalho lutando contra adeptos do governo que tentaram comprar um dossiê e mentem para se proteger. Você olha na tela do aeroporto, notícias sobre o Iraque, uma guerra montada na mentira de que Saddam tinha armas de destruição em massa. E vê que a polícia londrina foi absolvida não só de matar Jean Charles mas também de mentir sobre isso.
O tempo passa, você constata que perdeu uma hora. Ninguém informa nada. E você até aceita o atraso, desde que haja um pouco de cuidado. Essa história de atraso vem se arrastando há algum tempo. Mesmo antes do desastre da Gol, constatei que não era possível fazer agenda como antes. Cancelei uma viagem à Amazônia, onde haveria uma discussão ecológica. Fiz minhas contas e percebi que perderia três dias.
Os dissabores, para mim, realmente começaram a ficar visíveis após o colapso da Varig.
Viajo sempre nas primeiras filas. É nelas que vão também as pessoas doentes que, às vezes, dependem de soro para se alimentar no caminho. Vê-las no desconforto do atraso, sofrendo o cansaço típico dos lugares públicos, é triste.
Nosso problema é a segurança, dizem as autoridades diante do atraso. Por que não ampliar a preocupação e dizer que os problemas passam também por cuidar melhor das pessoas nesses períodos de crise?
Os governos tendem a ser defensivos. Toda a sua energia se concentra em criar um escudo contra as críticas. Os da esquerda, em certos casos, são piores, pois revestem suas trapalhadas de um verniz humanista, vivem chorando nas tribunas. Seus partidários na internet dizem: agora sim, com a crise aérea, a burguesia está sofrendo uma fração do que sofrem os pobres nas estradas de terra.
Cerca de 14 milhões de pessoas viajam nos aviões brasileiros. A democracia em progresso já, há muito, ampliou o espectro dos usuários. Com uma barrinha de cereal e um suco de manga, elas cruzam o país. Também a carga, passageira silenciosa, voa para todos os extremos, levando, em certos casos, produtos essenciais para os pobres. Às vezes, essenciais como um fígado, um rim.
O raciocínio do governo é este: tratar cada dificuldade como um caso isolado. Hoje, os controladores, amanhã os radares, depois o aparelho de comunicação, depois de amanhã, quem sabe, uma pane elétrica.
O dia em que compreenderem que há um problema de sistema, que é preciso fazer mudanças que vão desde o salário dos controladores e a revisão do equipamento até a mudança de modelo de gestão, as coisas certamente vão melhorar.
Estamos longe. É um governo acuado pela incompetência e pelas ondas de corrupção que ameaçam engolfá-lo. Sempre na defensiva: seu problema não é fazer, mas sobreviver. Quando revejo o passado, agendas que contavam com a precisão nos vôos, percebo que perdi meu nível de produtividade. Leio mais. Mas acho que, desse consolo, até os prisioneiros desfrutam.
Blade Runner tropical. Capitalismo selvagem com discursos e choro de socialismo moreno. A única coisa que me conforta é que essa é a escolha da maioria e só com paciência vamos convencê-la de outras opções. Restaram, de meio século de lutas: a barra de cereais, a democracia e um bom livro para cruzar os céus do meu país.


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