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TEATRO
No Rio, encenador fala a Gerald Thomas sobre seu teatro e critica montagem brasileira de "Decadência"
Berkoff segue sua busca por justiça
GERALD THOMAS
especial para a Folha
Antes de completar meus 18
anos, em 1971, ganhei um dos presentes mais decisivos de toda minha vida: dois ingressos para ir
ver a montagem de Steven Berkoff de "Metamorfose", baseada
no conto macabro de Kafka, no
Collegiate Theater, em Londres.
Eu sabia de quem se tratava. Morria de medo (como todo aspirante
diante do consagrado).
Junto com "O Balcão" de Genet,
que Victor Garcia montara em
SP, "Sonho de Uma Noite de Verão", de Peter Brook (a cujos ensaios finais assisti no Aldwich
Theater), e os "happenings" de
Lindsay Kemp, foi Berkoff quem
me proporcionou a experiência
teatral mais desafiadora de todas.
Seu palco era simples. Seus atores
faziam gestos simples e nos encaravam com cara de mau.
Berkoff era uma espécie de pantomímico punk. Sua estética trazia uma mistura de teatro russo,
formal, biomecânico, misturado a
um comportamento circense. Na
época, Peter Brook descobria o
"espaço vazio", a cena internacional começava a absorver as experiências radicais e antiformalistas
do Living Theater e de Jean-Jacques Lebel, a poeira da contracultura começava a baixar.
Se me contassem, lá na década
de 70, que, no ano 2000, eu estaria
conversando com Berkoff no Rio,
não acreditaria. Afinal, foram ele
e seu trabalho radical que me deram a coragem de que eu precisava para ingressar no teatro. Curiosamente, eu mesmo viria a dirigir a minha própria versão da
"Metamorfose" de Kafka, em
1987, que considerei um fracasso.
Pessoalmente, Berkoff é "o"
ator, sempre representando. A
começar pelo seu sotaque adquirido (e um tanto estranho) de
aristocrático de palco (uma língua em si, específica, muito didática e radicalmente diferente do
"cockney", o dialeto do trabalhador do East End londrino, com o
qual foi criado), ele faz grandes
gestos, grandes pausas, grandes
discursos sobre grandes causas.
Além de ator, Berkoff é também
autor e diretor. Como tal, é um
crítico azedo, um furioso sarcástico judeu, denunciando a grande
comédia de erros do comportamento humano, em busca de uma
verdade absoluta ou um senso de
justiça. E, como ator, autor e diretor, Berkoff só se interessa mesmo
por si próprio.
Ironicamente, Steven Berkoff
não é (e nem se sente) um vitorioso. Rala muito para sobreviver.
Amargo por ter sido relegado ao
status extraordinário de "acusador" e "zombador" da sociedade,
ele ainda se intriga com o fato de
que é tratado como um penetra.
Desempregado e sem projetos,
em meados da década passada,
Berkoff foi vender sua arte em
praias mais medíocres: fez participação em filmes de ação banais,
como "Rambo 3", "007 contra
Octopussy" ou "48 Horas", contracenando com Eddie Murphy.
Em todos, ele é o vilão assustador.
Ciente e orgulhoso de seu papel
de "outsider", Berkoff pôs-se a escrever um livro de fofocas/denúncias/bastidores das filmagens, revelando tudo sobre as picantes
"conspirações" entre os atores, os
extras e os subordinados da direção e descreveu em clima de deboche a paranóia em que vive
uma produção hollywoodiana.
Fechada como qualquer sociedade que se preze, Hollywood
também tem seus pudores, e Berkoff nunca mais recebeu convite
para filmar.
"Outsider" convicto, Berkoff investe fundo em sua intuição e sabe que sua função na Terra é berrar, desmascarar a hipocrisia dos
valores pequeno-burgueses e da
sociedade amassada pelo consumismo. Ele se vê como uma espécie de Robin Hood do mundo teatral. Uma espécie de "working
class hero" do submundo inglês.
Sempre muito combatido, Berkoff acabou tendo a adesão dos
nomes mais famosos da cena
mundial, dirigindo Mikhail
Baryshnikov, Roman Polanski,
Joan Collins, Jean-Louis Barrault
e Christopher Walken nos mais
diversos papéis. Sua montagem
de "Salomé", há cerca de cinco
anos no BAM, em Nova York, foi
aclamada por público e crítica. Finalmente parecia que Berkoff encontrava o sucesso merecido.
Mas, anos depois, ele se sente só.
Viaja pelo mundo com seu monólogo, "Shakespeare's Villains",
e supervisiona montagens de seus
textos em outros países.
Pode ser que Pinter, Brenton,
Hare, Ayckbourne, Osbourne,
Bennet e Stoppard sejam os mais
montados autores do teatro britânico. Mas, sem dúvida, é a dramaturgia de Berkoff que ficará quando os acadêmicos empenhados
em fazer um levantamento da era
"punk" inglesa perceberem que é
nessa dramaturgia que se encontra a única verdadeira expressão
"moderna" do teatro britânico.
Folha - No início de sua carreira, você parece ter feito o pacto
com o "underdog", o injustiçado, encenando o isolamento do
indivíduo, as privações do operário e sua escravidão ao sistema. Décadas depois, participou
de filmes como "Rambo". Saindo do sistema, publicou livros
contando barbaridades sobre os
estúdios. A pergunta é: o que
tanto o repugna em Hollywood
e por que você se dedica a isso?
Steven Berkoff - O sistema, assim como ele é, é uma mentira.
Ele pode incluí-lo, mas a tendência maior é a de descartá-lo. Os
sistemas tendem a ser corruptos
porque eles existem a partir do fato de que os membros que os
compõem são todos iguais, acreditam nas mesmas coisas, gostam
das mesmas coisas. Esses sistemas não querem saber de uma
opinião externa a ele e, a partir de
seus pequenos julgamentos e preferências, fazem disso uma lei.
De repente, chega ao sistema alguém diferente. E esse elemento
de diferença tende a criar uma alteração química no sistema, jogá-lo num caos. Quando eu entrei no
sistema, me senti como o combustível de que ele precisava para
se nutrir, sabendo de antemão
que não me igualaria ao seu denominador comum. Por isso o traí.
Folha - Apesar de ser vitorioso
absoluto do sistema, você parece ficar mais incomodado pela
parcela que o rejeita.
Berkoff - Não fiz esses filmes
hollywoodianos por estar atraído
pelo sistema. Como ator, que por
acaso escreve e também dirige,
precisava trabalhar e, graças a
Deus, me chamaram. Então, parte
de mim se vendeu. O meu único
pensamento é grana: quanto e
quando vou ganhar alguma.
Folha - Incrível que alguém na
sua posição ainda tenha de se
preocupar com isso.
Berkoff - Às vezes é a única forma de esperança. Se eu tivesse
realmente uma escolha, não faria
aqueles papéis. Mas, como você
falou, a subcultura me abraçou,
mas não me financiou. O sistema
tem prazer em vê-lo naufragar
quando você o critica. E eu sou feroz em minhas críticas.
Folha - E os subsídios para teatro na Inglaterra? E os financiamentos do Arts Council?
Berkoff - O Arts Council me
ajudou por muitos anos. Só fiz o
"Hamlet" por causa dessa subvenção. O Arts Council dá dinheiro e não enche o saco nem cria leis
para cobrar nada, contanto que
você lote o teatro. Mas, terminado
o subsídio, achei que estava sendo
importado pelo teatro comercial.
Os mandantes, mais cedo ou
mais tarde, vão querer se sentir
iguais a você e acabam achando
que podem dizer: "Por que você
não monta isso? Ou aquilo?". O
subsídio tem esse lado nojento.
Folha - Você tem dúvida quanto ao seu lugar na história? Você
tem dúvida quanto ao fato de
que será lembrado, enquanto
eles serão esquecidos?
Berkoff - É uma recompensa.
Mas, na hora em que está acontecendo, no meio do sufoco e da rejeição, você não pensa em estratégia. O que você quer é trabalhar. E
a rejeição deles me deu a certeza
de que meu trabalho seria eterno.
Folha - Você se entristece pelo
fato de o trabalho no exterior
não repercutir muito em casa?
Berkoff - É evidente que quero
deixar impressa uma marca forte
na Inglaterra. Mas a impressão
causada fora é importantíssima
para as pessoas que me assistem.
E a felicidade delas é, por ora, a
minha também. Eles riem, se divertem, respiram aquilo que escrevi e me vêem sem os preconceitos que desperto em casa.
Folha - Você já dirigiu o Mikhail Baryshnikov na Broadway,
e Roman Polanski, ambos no papel da barata (Gregor Samsa) na
"Metamorfose" de Kafka. Além
disso, você fez o próprio papel
da barata, e mais tarde, o do pai
da barata. O que o motivaria a
montar esse espetáculo novamente, dessa vez no Brasil?
Berkoff - Sabe, a última vez que
montei a peça pensei que jamais
teria a motivação para fazê-la de
novo. Mas a vontade de viajar e de
explorar e tentar entender outras
nações, outras culturas, entender
e falar outras línguas me dá uma
tremenda satisfação. Acho que reproduzir "Metamorfose" seria
fascinante em outra língua.
Quando dirigi o Roman Polanski em francês, foi muito complicado, pois ele tinha o rei na barriga no que dizia respeito ao cinema, mas tremeu na hora de decorar um papel. Ele sabia dirigir,
mas não sabia ser dirigido.
Eu fiquei nervoso, afinal, era
Roman Polanski, um cara cujos
filmes eu via e amava. Eu tinha
um enorme respeito por ele, mas
ele nunca entendeu meu tipo de
teatro. Com Baryshnikov, sim, foi
uma experiência maravilhosa. Ele
se mexia divinamente. Mas os
produtores não investiram no sucesso, e a temporada foi limitada.
"Metamorfose" é um tema universal e funcionaria bem aqui.
Você já fez, não é?
Folha - Mas faz muito tempo,
foi em 1987... Você já optou por
espelhar a sua visão do mundo
na obra de Kafka e Wilde e por
transformar sua dramaturgia
numa poesia raivosa. O seu sarcasmo tem respaldo numa sociedade que nada leva a sério e
não tem costumes para entender a sua crítica aos costumes?
Berkoff - Acho que a amargura
e a raiva dos meus trabalhos são
estados emocionalmente válidos
e sempre encontrarão alguém que
as entenda. Essa raiva vem da paixão e não há nada de errado com
isso. Quando eu escrevo, expulso
a raiva. Na expulsão, a raiva se retransmite, se transforma numa
outra linguagem, que se transforma em performance. E isso acaba
se transformando em humor.
Folha - Os melhores textos da
humanidade saíram de verdadeiras situações psicóticas. O
problema é que cada vez sabe-se menos sobre isso. Cria-se
uma expectativa cada vez mais
superficial de o que o teatro deve ser e fazer para manter-se interessante.
Berkoff - É, ninguém mais sabe
nada sobre os credos e os temores
subcutâneos, psicóticos, neuróticos de pedra que fizeram do teatro uma expressão magnífica. Tudo é feito para não fazer o consumidor parar para pensar.
Folha - O seu teatro continua
tendo aquela raiva trabalhadora, aquela poesia amarga "cockney". Como é representar para
um público de consumidores?
Berkoff - Sou totalmente "working class". Sou um judeu do East
End de Londres, influenciado pela pobreza absoluta dos pais imigrantes, olhando para os aristocratas com ódio mortal.
Sou um homem comum e isso
nunca vai mudar. Isso me dá uma
tremenda energia e uma enorme
superioridade quando encaro
aquele pateta consumidor, cujo
único interesse é o material e, justamente por causa desse excesso
de agora, ele vai causar a falência
do sistema, e tudo voltará a ser
controlado por leis draconianas.
Folha - Qual é a peça de seu
próprio repertório que melhor
exemplifica sua obra?
Berkoff - Acho que, olhando tudo dentro de sua própria perspectiva, a que mais me representa é
"Greek" ("Greek", além de significar grego, uma língua que poucos entendem, também é uma expressão usada nas casas de massagem em Londres e representa um
código para que a massagista,
mulher, introduza um pênis artificial no ânus do homem).
"Greek" tem muito a ver com a
minha vida. Tem a ver com uma
relação amorosa que tive. Sofri
muito e quis muito devolver esse
sentimento de perda para a sociedade, enfiando um "enorme" no
ânus dela. Por acaso esse sentimento cabia muito bem dentro de
Édipo. É uma peça muito dura,
trágica e apaixonada. É a que mais
me agride toda vez que a monto.
Folha - Em "Shakespeare's Villains" (Os Vilões de Shakespeare), você narra a vida dos patifes
com muito orgulho e você se coloca na pele deles.
Berkoff - Gosto de rir com as calhordices daqueles personagens.
Eles respiram o mal. É fascinante.
Shakespeare os torna engraçados,
mas raramente se ri deles.
Folha - Você me disse, outro
dia, que atores americanos fazem um Shakespeare melhor
que os ingleses. Fale o que sabe
sobre os atores brasileiros.
Berkoff - Não sei nada sobre
atores brasileiros, mas acho que
devem ser muito bons. Do que eu
já assisti, vejo que tem muita
energia e humor, um tremendo
poder nas mandíbulas. Notei que
berram muito. Adoraria encenar
algo com atores brasileiros,
acompanhado de uma bateria de
escola de samba e bailarinos.
Folha - Qual é a sua grande
queixa?
Berkoff - Tenho tantas que não
chego a ter uma em particular.
Folha - Não seria um desesperado senso de justiça?
Berkoff - Acho que é isso, sim. É
uma espécie de saudade de uma
justiça que, na verdade, nunca
houve. Eu diria que é uma busca
pelos valores mais puros ou uma
verdade intrínseca que, talvez,
não volte mais à tona.
Folha - O seu teatro, altamente mímico e expressionista, chocou os ingleses na década de 70,
quando o público começava a
se deparar com outra nova estética, de Peter Brook, que era antiexpressionista, lidava com
questões ideológicas e desnudava o teatro de sua pompa.
Berkoff - Eu sempre me impressionei muito com Peter Brook. Eu
o acho o mais fantástico e imaginativo diretor que já vi. Quando
via seu teatro, naquela época,
achava que tinha um jeito meio
amador. Mas comecei a prestar
mais atenção. Eu tinha vergonha
da minha profissão. Quando percebi que Brook estava fazendo tudo aquilo para tentar se livrar de
um estilo, senti-me perto do abismo. Brook fez com que minha geração tomasse atitudes extremas.
Folha - O Brasil seria um lugar
interessante para você. Você viveria aqui por um tempo?
Berkoff - Adoraria. Sou um homem velho agora. Só tenho alguns anos de vida (risos), talvez
uns dois ou três. Mas ainda tenho
a minha lucidez. Não quero gastá-los naquele mesmo lugar, representando para aquela mesma platéia, aqueles mesmos críticos.
Folha - O mundo teatral é mesmo um mundo de expatriados.
Você se sente confortável com a
idéia de que seus texto serão
montados, daqui a 20, 30 anos,
de uma forma inimaginável hoje, talvez tendo cavalos clonados como atores etc...
Berkoff - Vai ser muito divertido. Fico vendo a paranóia de Pinter e Beckett, que especificam tudo nas rubricas, milimetram tudo. Eu sou livre, quero que os diretores e atores se sintam livres.
Folha - No entanto você já me
confessou que se sente mal pelo
fato de a produção atual de
"Decadência" (com Beth Goulart
e Guilherme Leme, em cartaz no
Rio) não ter respeitado o sofá,
indicado na rubrica.
Berkoff - Sinto que a produção
não lida com o sexo e a violência
da peça com a delicadeza que o
assunto merece. Acho o "approach" deles muito óbvio, muito
apelativo. Deliberadamente escolhi um sofá porque ele cria obstáculos de movimento. O braço do
sofá faz com que o contato físico
entre alguém sentado e alguém
em pé não seja direto. Mas eles colocaram em cena uma espécie de
pufe, levando a peça para um extremo que matou a sua sutileza.
E o sexo é retratado com muita
obviedade. Não deveria ter tantas
posições de sexo, ou referência a
sexo, se o que justifica a trama da
peça é justamente a dificuldade e
a masturbação mental a que se
chega quando se fala de sexo. Não
pode também ter tanta referência
a droga e álcool, pois parece que é
o efeito disso que causa o rancor.
Não é se masturbando em cena
que se exprime sensualidade.
Quis desaparecer debaixo da minha poltrona nessa hora.
Colaborou Fabiana Guglielmetti
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