São Paulo, Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2000


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TEATRO
No Rio, encenador fala a Gerald Thomas sobre seu teatro e critica montagem brasileira de "Decadência"
Berkoff segue sua busca por justiça


GERALD THOMAS
especial para a Folha

Antes de completar meus 18 anos, em 1971, ganhei um dos presentes mais decisivos de toda minha vida: dois ingressos para ir ver a montagem de Steven Berkoff de "Metamorfose", baseada no conto macabro de Kafka, no Collegiate Theater, em Londres. Eu sabia de quem se tratava. Morria de medo (como todo aspirante diante do consagrado).
Junto com "O Balcão" de Genet, que Victor Garcia montara em SP, "Sonho de Uma Noite de Verão", de Peter Brook (a cujos ensaios finais assisti no Aldwich Theater), e os "happenings" de Lindsay Kemp, foi Berkoff quem me proporcionou a experiência teatral mais desafiadora de todas. Seu palco era simples. Seus atores faziam gestos simples e nos encaravam com cara de mau.
Berkoff era uma espécie de pantomímico punk. Sua estética trazia uma mistura de teatro russo, formal, biomecânico, misturado a um comportamento circense. Na época, Peter Brook descobria o "espaço vazio", a cena internacional começava a absorver as experiências radicais e antiformalistas do Living Theater e de Jean-Jacques Lebel, a poeira da contracultura começava a baixar.
Se me contassem, lá na década de 70, que, no ano 2000, eu estaria conversando com Berkoff no Rio, não acreditaria. Afinal, foram ele e seu trabalho radical que me deram a coragem de que eu precisava para ingressar no teatro. Curiosamente, eu mesmo viria a dirigir a minha própria versão da "Metamorfose" de Kafka, em 1987, que considerei um fracasso.
Pessoalmente, Berkoff é "o" ator, sempre representando. A começar pelo seu sotaque adquirido (e um tanto estranho) de aristocrático de palco (uma língua em si, específica, muito didática e radicalmente diferente do "cockney", o dialeto do trabalhador do East End londrino, com o qual foi criado), ele faz grandes gestos, grandes pausas, grandes discursos sobre grandes causas.
Além de ator, Berkoff é também autor e diretor. Como tal, é um crítico azedo, um furioso sarcástico judeu, denunciando a grande comédia de erros do comportamento humano, em busca de uma verdade absoluta ou um senso de justiça. E, como ator, autor e diretor, Berkoff só se interessa mesmo por si próprio.
Ironicamente, Steven Berkoff não é (e nem se sente) um vitorioso. Rala muito para sobreviver. Amargo por ter sido relegado ao status extraordinário de "acusador" e "zombador" da sociedade, ele ainda se intriga com o fato de que é tratado como um penetra.
Desempregado e sem projetos, em meados da década passada, Berkoff foi vender sua arte em praias mais medíocres: fez participação em filmes de ação banais, como "Rambo 3", "007 contra Octopussy" ou "48 Horas", contracenando com Eddie Murphy. Em todos, ele é o vilão assustador.
Ciente e orgulhoso de seu papel de "outsider", Berkoff pôs-se a escrever um livro de fofocas/denúncias/bastidores das filmagens, revelando tudo sobre as picantes "conspirações" entre os atores, os extras e os subordinados da direção e descreveu em clima de deboche a paranóia em que vive uma produção hollywoodiana.
Fechada como qualquer sociedade que se preze, Hollywood também tem seus pudores, e Berkoff nunca mais recebeu convite para filmar.
"Outsider" convicto, Berkoff investe fundo em sua intuição e sabe que sua função na Terra é berrar, desmascarar a hipocrisia dos valores pequeno-burgueses e da sociedade amassada pelo consumismo. Ele se vê como uma espécie de Robin Hood do mundo teatral. Uma espécie de "working class hero" do submundo inglês.
Sempre muito combatido, Berkoff acabou tendo a adesão dos nomes mais famosos da cena mundial, dirigindo Mikhail Baryshnikov, Roman Polanski, Joan Collins, Jean-Louis Barrault e Christopher Walken nos mais diversos papéis. Sua montagem de "Salomé", há cerca de cinco anos no BAM, em Nova York, foi aclamada por público e crítica. Finalmente parecia que Berkoff encontrava o sucesso merecido.
Mas, anos depois, ele se sente só. Viaja pelo mundo com seu monólogo, "Shakespeare's Villains", e supervisiona montagens de seus textos em outros países.
Pode ser que Pinter, Brenton, Hare, Ayckbourne, Osbourne, Bennet e Stoppard sejam os mais montados autores do teatro britânico. Mas, sem dúvida, é a dramaturgia de Berkoff que ficará quando os acadêmicos empenhados em fazer um levantamento da era "punk" inglesa perceberem que é nessa dramaturgia que se encontra a única verdadeira expressão "moderna" do teatro britânico.

Folha - No início de sua carreira, você parece ter feito o pacto com o "underdog", o injustiçado, encenando o isolamento do indivíduo, as privações do operário e sua escravidão ao sistema. Décadas depois, participou de filmes como "Rambo". Saindo do sistema, publicou livros contando barbaridades sobre os estúdios. A pergunta é: o que tanto o repugna em Hollywood e por que você se dedica a isso?
Steven Berkoff -
O sistema, assim como ele é, é uma mentira. Ele pode incluí-lo, mas a tendência maior é a de descartá-lo. Os sistemas tendem a ser corruptos porque eles existem a partir do fato de que os membros que os compõem são todos iguais, acreditam nas mesmas coisas, gostam das mesmas coisas. Esses sistemas não querem saber de uma opinião externa a ele e, a partir de seus pequenos julgamentos e preferências, fazem disso uma lei.
De repente, chega ao sistema alguém diferente. E esse elemento de diferença tende a criar uma alteração química no sistema, jogá-lo num caos. Quando eu entrei no sistema, me senti como o combustível de que ele precisava para se nutrir, sabendo de antemão que não me igualaria ao seu denominador comum. Por isso o traí.

Folha - Apesar de ser vitorioso absoluto do sistema, você parece ficar mais incomodado pela parcela que o rejeita.
Berkoff -
Não fiz esses filmes hollywoodianos por estar atraído pelo sistema. Como ator, que por acaso escreve e também dirige, precisava trabalhar e, graças a Deus, me chamaram. Então, parte de mim se vendeu. O meu único pensamento é grana: quanto e quando vou ganhar alguma.

Folha - Incrível que alguém na sua posição ainda tenha de se preocupar com isso.
Berkoff -
Às vezes é a única forma de esperança. Se eu tivesse realmente uma escolha, não faria aqueles papéis. Mas, como você falou, a subcultura me abraçou, mas não me financiou. O sistema tem prazer em vê-lo naufragar quando você o critica. E eu sou feroz em minhas críticas.

Folha - E os subsídios para teatro na Inglaterra? E os financiamentos do Arts Council?
Berkoff -
O Arts Council me ajudou por muitos anos. Só fiz o "Hamlet" por causa dessa subvenção. O Arts Council dá dinheiro e não enche o saco nem cria leis para cobrar nada, contanto que você lote o teatro. Mas, terminado o subsídio, achei que estava sendo importado pelo teatro comercial.
Os mandantes, mais cedo ou mais tarde, vão querer se sentir iguais a você e acabam achando que podem dizer: "Por que você não monta isso? Ou aquilo?". O subsídio tem esse lado nojento.

Folha - Você tem dúvida quanto ao seu lugar na história? Você tem dúvida quanto ao fato de que será lembrado, enquanto eles serão esquecidos?
Berkoff -
É uma recompensa. Mas, na hora em que está acontecendo, no meio do sufoco e da rejeição, você não pensa em estratégia. O que você quer é trabalhar. E a rejeição deles me deu a certeza de que meu trabalho seria eterno.

Folha - Você se entristece pelo fato de o trabalho no exterior não repercutir muito em casa?
Berkoff -
É evidente que quero deixar impressa uma marca forte na Inglaterra. Mas a impressão causada fora é importantíssima para as pessoas que me assistem. E a felicidade delas é, por ora, a minha também. Eles riem, se divertem, respiram aquilo que escrevi e me vêem sem os preconceitos que desperto em casa.

Folha - Você já dirigiu o Mikhail Baryshnikov na Broadway, e Roman Polanski, ambos no papel da barata (Gregor Samsa) na "Metamorfose" de Kafka. Além disso, você fez o próprio papel da barata, e mais tarde, o do pai da barata. O que o motivaria a montar esse espetáculo novamente, dessa vez no Brasil?
Berkoff -
Sabe, a última vez que montei a peça pensei que jamais teria a motivação para fazê-la de novo. Mas a vontade de viajar e de explorar e tentar entender outras nações, outras culturas, entender e falar outras línguas me dá uma tremenda satisfação. Acho que reproduzir "Metamorfose" seria fascinante em outra língua.
Quando dirigi o Roman Polanski em francês, foi muito complicado, pois ele tinha o rei na barriga no que dizia respeito ao cinema, mas tremeu na hora de decorar um papel. Ele sabia dirigir, mas não sabia ser dirigido.
Eu fiquei nervoso, afinal, era Roman Polanski, um cara cujos filmes eu via e amava. Eu tinha um enorme respeito por ele, mas ele nunca entendeu meu tipo de teatro. Com Baryshnikov, sim, foi uma experiência maravilhosa. Ele se mexia divinamente. Mas os produtores não investiram no sucesso, e a temporada foi limitada. "Metamorfose" é um tema universal e funcionaria bem aqui. Você já fez, não é?

Folha - Mas faz muito tempo, foi em 1987... Você já optou por espelhar a sua visão do mundo na obra de Kafka e Wilde e por transformar sua dramaturgia numa poesia raivosa. O seu sarcasmo tem respaldo numa sociedade que nada leva a sério e não tem costumes para entender a sua crítica aos costumes?
Berkoff -
Acho que a amargura e a raiva dos meus trabalhos são estados emocionalmente válidos e sempre encontrarão alguém que as entenda. Essa raiva vem da paixão e não há nada de errado com isso. Quando eu escrevo, expulso a raiva. Na expulsão, a raiva se retransmite, se transforma numa outra linguagem, que se transforma em performance. E isso acaba se transformando em humor.

Folha - Os melhores textos da humanidade saíram de verdadeiras situações psicóticas. O problema é que cada vez sabe-se menos sobre isso. Cria-se uma expectativa cada vez mais superficial de o que o teatro deve ser e fazer para manter-se interessante.
Berkoff -
É, ninguém mais sabe nada sobre os credos e os temores subcutâneos, psicóticos, neuróticos de pedra que fizeram do teatro uma expressão magnífica. Tudo é feito para não fazer o consumidor parar para pensar.

Folha - O seu teatro continua tendo aquela raiva trabalhadora, aquela poesia amarga "cockney". Como é representar para um público de consumidores?
Berkoff -
Sou totalmente "working class". Sou um judeu do East End de Londres, influenciado pela pobreza absoluta dos pais imigrantes, olhando para os aristocratas com ódio mortal.
Sou um homem comum e isso nunca vai mudar. Isso me dá uma tremenda energia e uma enorme superioridade quando encaro aquele pateta consumidor, cujo único interesse é o material e, justamente por causa desse excesso de agora, ele vai causar a falência do sistema, e tudo voltará a ser controlado por leis draconianas.

Folha - Qual é a peça de seu próprio repertório que melhor exemplifica sua obra?
Berkoff -
Acho que, olhando tudo dentro de sua própria perspectiva, a que mais me representa é "Greek" ("Greek", além de significar grego, uma língua que poucos entendem, também é uma expressão usada nas casas de massagem em Londres e representa um código para que a massagista, mulher, introduza um pênis artificial no ânus do homem). "Greek" tem muito a ver com a minha vida. Tem a ver com uma relação amorosa que tive. Sofri muito e quis muito devolver esse sentimento de perda para a sociedade, enfiando um "enorme" no ânus dela. Por acaso esse sentimento cabia muito bem dentro de Édipo. É uma peça muito dura, trágica e apaixonada. É a que mais me agride toda vez que a monto.

Folha - Em "Shakespeare's Villains" (Os Vilões de Shakespeare), você narra a vida dos patifes com muito orgulho e você se coloca na pele deles.
Berkoff -
Gosto de rir com as calhordices daqueles personagens. Eles respiram o mal. É fascinante. Shakespeare os torna engraçados, mas raramente se ri deles.

Folha - Você me disse, outro dia, que atores americanos fazem um Shakespeare melhor que os ingleses. Fale o que sabe sobre os atores brasileiros.
Berkoff -
Não sei nada sobre atores brasileiros, mas acho que devem ser muito bons. Do que eu já assisti, vejo que tem muita energia e humor, um tremendo poder nas mandíbulas. Notei que berram muito. Adoraria encenar algo com atores brasileiros, acompanhado de uma bateria de escola de samba e bailarinos.

Folha - Qual é a sua grande queixa?
Berkoff -
Tenho tantas que não chego a ter uma em particular.

Folha - Não seria um desesperado senso de justiça?
Berkoff -
Acho que é isso, sim. É uma espécie de saudade de uma justiça que, na verdade, nunca houve. Eu diria que é uma busca pelos valores mais puros ou uma verdade intrínseca que, talvez, não volte mais à tona.

Folha - O seu teatro, altamente mímico e expressionista, chocou os ingleses na década de 70, quando o público começava a se deparar com outra nova estética, de Peter Brook, que era antiexpressionista, lidava com questões ideológicas e desnudava o teatro de sua pompa.
Berkoff -
Eu sempre me impressionei muito com Peter Brook. Eu o acho o mais fantástico e imaginativo diretor que já vi. Quando via seu teatro, naquela época, achava que tinha um jeito meio amador. Mas comecei a prestar mais atenção. Eu tinha vergonha da minha profissão. Quando percebi que Brook estava fazendo tudo aquilo para tentar se livrar de um estilo, senti-me perto do abismo. Brook fez com que minha geração tomasse atitudes extremas.

Folha - O Brasil seria um lugar interessante para você. Você viveria aqui por um tempo?
Berkoff -
Adoraria. Sou um homem velho agora. Só tenho alguns anos de vida (risos), talvez uns dois ou três. Mas ainda tenho a minha lucidez. Não quero gastá-los naquele mesmo lugar, representando para aquela mesma platéia, aqueles mesmos críticos.

Folha - O mundo teatral é mesmo um mundo de expatriados. Você se sente confortável com a idéia de que seus texto serão montados, daqui a 20, 30 anos, de uma forma inimaginável hoje, talvez tendo cavalos clonados como atores etc...
Berkoff -
Vai ser muito divertido. Fico vendo a paranóia de Pinter e Beckett, que especificam tudo nas rubricas, milimetram tudo. Eu sou livre, quero que os diretores e atores se sintam livres.

Folha - No entanto você já me confessou que se sente mal pelo fato de a produção atual de "Decadência" (com Beth Goulart e Guilherme Leme, em cartaz no Rio) não ter respeitado o sofá, indicado na rubrica.
Berkoff -
Sinto que a produção não lida com o sexo e a violência da peça com a delicadeza que o assunto merece. Acho o "approach" deles muito óbvio, muito apelativo. Deliberadamente escolhi um sofá porque ele cria obstáculos de movimento. O braço do sofá faz com que o contato físico entre alguém sentado e alguém em pé não seja direto. Mas eles colocaram em cena uma espécie de pufe, levando a peça para um extremo que matou a sua sutileza.
E o sexo é retratado com muita obviedade. Não deveria ter tantas posições de sexo, ou referência a sexo, se o que justifica a trama da peça é justamente a dificuldade e a masturbação mental a que se chega quando se fala de sexo. Não pode também ter tanta referência a droga e álcool, pois parece que é o efeito disso que causa o rancor. Não é se masturbando em cena que se exprime sensualidade. Quis desaparecer debaixo da minha poltrona nessa hora.


Colaborou Fabiana Guglielmetti


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