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GASTRONOMIA
Aprendendo a fazer pão
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Mulheres e trabalho caseiro dão uma boa série para
começo de ano. Quem é essa baixinha, vestida de branco? O que é,
o que é, esse fiapo de gente de cabelo vermelho, arretada, difícil,
fechada? O que é, o que é, reclusa,
apaixonada, monja, pagã, noiva
sem noivo, homem ou mulher, o
que é?
Dizem que é a maior poeta americana, alguns a comparam a Shakespeare na consistência das palavras. O que tinha na cabeça para
se esconder uma existência inteira
na casa dos pais, esconder seus
quase 2.000 poemas, nunca publicados em vida, guardados em saquinhos de pano?
Não aprendeu o recato do lar na
escola. A diretora tinha fogo nas
ventas e afirmava que um dos
grandes perigos para o cérebro
das mulheres era a cozinha. Concentravam toda a atenção nessa
área do conhecimento e não lhes
sobrava tempo para cultivar a
mente. O que as donas-de-casa tinham que fazer era simplificar a
lida e aproveitar a vida (com leituras edificantes). E que se danassem os maridos, esses tiranos,
diante dos quais as mulheres se
curvavam em servidão sem esperança. (Opa, isso em 1850!)
Mas a poeta só achava da vida o
que queria achar, depois de muito
pensar. Tratou de transformar a
religião da família e do colégio numa coisa só sua, estudou bastante,
apaixonou-se pelos livros e depois, já que podia escolher, escolheu voltar para casa, para a fortaleza paterna, de onde começaria
uma imensa viagem para dentro
de si mesma.
Lutou sempre para reconciliar
seus dons de imaginação com o
papel de mulher, com a realidade
doméstica, sem deixar que o fogão, a agulha e a vassoura a fizessem menor. Completou a grandeza de seu projeto poético lavando
louça na pia.
"Viver é um êxtase, o mero sentir a vida é alegria bastante."
É um lugar-comum comparar a
casa a um cadinho de alquimia,
mas os lugares-comuns existem
para serem repetidos à exaustão.
A transformação das matérias, a
fibra se fazendo fio, o fio tecido, as
aranhas trabalhando em círculos
de luz, o fim e o começo, circunferências, tarefa interminável. O
barro, bilha e vaso, o bulbo, flor.
Os detalhes mais comezinhos se
transformavam em metáforas,
palavras unidas ou separadas por
traços inconfundíveis e escritas
em papeluchos guardados no bolso, em meio à faina.
Não era preciso atravessar a rua,
largar a horta, a estufa ou o jardim
para saber o Vesúvio, Veneza, Vera Cruz, Vevay. "Fechar os olhos é
viajar. Gosto de viajar, mas minha
casa tem encantos só dela."
Andando de cá para lá, mãos
ativas, cabeça no mundo da lua.
As coisas do dia-a-dia tinham um
halo sagrado. Rosa-abelha-borboleta, pássaros-morcegos, bolos-sopas, bordados-costuras,
uma religião de domesticidade
(feroz). Na verdade, não adorava
o trabalho todo da casa e, imagino, muita empregada ao redor.
Sanguessuga, tensa, erótica, gostava mesmo era de juntar palavras, retratar a vida e a morte, bordar em sangue, chorar por dentro,
trepanar o mundo, destampar a
cabeça para ver o cérebro. Mas, já
que tinha que escolher um serviço
mais afável, que fosse a cozinha
ou o jardim.
Adorava escrever cartas, nos
dias de hoje seria uma internauta
viciada e empedernida. Aos 14
anos, conta a uma amiga: "...Hoje
vou aprender a fazer pão".
Daí em diante, tornou-se a padeira da casa, o pai não comia outro pão que não o dela. Num lance
incongruente de sua biografia de
mito, ganhou um concurso de bolos na feira de gado de sua cidade.
O prêmio era de 75 cents, mas ganhou e continuou a fazer o pão ou
bolo vida afora. "As pessoas querem doces, então é preciso fazê-los." Quatro xícaras de farinha de
centeio - 1/2 xícara de manteiga
- 1/2 xícara de creme - uma colher de sopa de gengibre - uma
colher de chá de soda - uma colher de chá de sal. Confeitar com
melado.
E sempre batendo a massa, com
a cabeça rodando, tentando
transformar o indizível em articulado, rabiscando, rabiscando.
Flashes do dia-a-dia furando e
machucando os olhos. A irmã
com a vassoura na mão - o
avental sujo - o vestido que havia que ser branco impoluto - o
balde as flores no vaso - é hora
de fazer o jantar - costuro o mais
depressa que posso para ter tempo de te amar - está na hora do
chá - viver é tão emocionante
que não sobra tempo para mais
nada - os pêsames a carta - os
pequenos desejos de mamãe, ler
para ela, abaná-la, prometer que
sua saúde vai voltar amanhã.
Paisagem que a alma triturou,
descascou, escalpelou, rachou,
soldou em versos.
(Emily Dickinson. Amherst,
Nova Inglaterra, 1830-1886)
E-mail: ninahort@uol.com.br
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