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São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"A ESTRADA"

Longa de 1954 do diretor italiano reestréia em cópia restaurada

Fellini expõe o difícil encontro entre brutalidade e inocência

Divulgação
Cena de "A Estrada", de 1954, primeiro grande clássico do diretor italiano Federico Fellini (1920-1993), que volta agora às telas


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Para Roberto Rossellini, que passou do regime à Resistência durante a Segunda Guerra antes de se afirmar como pai do movimento neo-realista, a verdadeira resistência ao fascismo, na Itália, dera-se no âmbito da cultura popular. Rossellini via no sarcasmo e na carnavalização da arte popular italiana o perfeito antídoto para os efeitos da teatralização da política promovida pelo fascismo. Talvez por isso, ele tenha apadrinhado Federico Fellini.
A importância de Fellini para o neo-realismo, movimento do qual "A Estrada" ("La Strada", que reestréia hoje na cidade) não deixa de ser fruto, foi ter reafirmado a validade desse antídoto no cinema italiano do pós-guerra. Obcecado pelo circo, pelo teatro de revista e pelo "music hall", Fellini fez da arte popular seu manancial criativo. E o fez com tal propriedade que se afastou, paradoxalmente, do neo-realismo, ao mergulhar, para além dos preceitos objetivistas, na subjetividade de um mundo espetacularizado.
Em "La Strada", seu primeiro grande clássico, a escolha de Fellini já era clara: mais preocupado com a verdade dos personagens, figuras arquetípicas saídas da tradição "clownesca" italiana (e da "commedia dell'arte"), do que com o contexto histórico/político em que se inseriam, o cineasta tentava provar que uma obra universalista poderia ser tão ou mais realista do que um filme preso a uma realidade sociopolítica.
"Não acredito na objetividade, pelo menos como a entendem, nem reconheço o conceito que fazem do neo-realismo, que, para mim, não esgota nem de longe o cunho do movimento a que me orgulho de pertencer", dizia ele a propósito de "La Strada".
Fellini compartilhava, à sua maneira sempre um tanto satírica, o humanismo cristão de Rossellini, mas se negava a compactuar com a perspectiva sociologizante do neo-realismo que a turma de Cesare Zavattini representava. Seu "La Strada", no entanto, não escapa à definição que Zavattini deu, certa feita, ao neo-realismo: a de um "cinema do encontro".
"La Strada" é o encontro entre Zampanò e Gelsomina ou, se quisermos, entre Giulietta Masina (incomparavelmente hiperdirigida) e Anthony Quinn, seus intérpretes. Encontro também, este mais conturbado, entre Fellini e Quinn, porque afinal "La Strada" é mais um destes clássicos do cinema moderno do pós-guerra que nasceu do encontro entre uma estrela hollywoodiana insatisfeita e um cineasta europeu emergente.
Fellini quer nos falar da dificuldade do encontro ou, se quisermos, do nascimento da sociedade. Ele não negligencia a condição social das personagens, mas parece mais interessado em revelar-lhes a personalidade. Gelsomina, a encarnação do espírito da infância, e Zampanò, encarnação da brutalidade e do egoísmo masculinos, dois personagens destinados a nunca se entenderem, unidos por uma idéia plantada entre eles pelo personagem de Richard Basehart, um equilibrista fatalista e folgazão que completa a tríade mambembe do filme.
Do encontro entre a inocência (maculada) de Gelsomina e a brutalidade (culpada) de Zampanò, o espectador dificilmente sai o mesmo. "La Strada" é um desses clássicos que nos prende para sempre em sua teia de afecções.


A Estrada
La Strada

    
Direção: Federico Fellini
Produção: Itália, 1954
Com: Anthony Quinn, Giulietta Masina
Quando: A partir de hoje no Cinearte 1



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