São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"VILLEGAGNON E A FRANÇA ANTÁRTICA"

Ações do colonizador francês no século 16 são contextualizadas

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

E m agosto do ano passado, a Marinha do Brasil ofereceu à cidade francesa de Provins um pequeno obelisco feito de pedras tiradas da ilha de Villegaignon, no Rio, onde está a Escola Naval.
Para entender o significado do gesto convém ler "Villegagnon e a França Antártica - Uma Reavaliação". Trata-se de um bom exemplo de um gênero raro no Brasil, mas extremamente útil e necessário: o livro de divulgação de história. E é ainda mais útil por explicar um episódio sempre lembrado, mas pouco conhecido em detalhe: a tentativa de colonização francesa do Rio de Janeiro no século 16.
Obras que explicam sem rebuscamentos o passado têm sido desdenhadas pelos historiadores chamados profissionais. A universidade brasileira, com honrosas exceções, considera a divulgação da pesquisa uma atividade diluidora e premia aqueles que usam linguagem cifrada. Quando um jornalista como Eduardo Bueno fez sucesso com livros de divulgação escritos em linguagem despretensiosa, foi apelidado de "Paulo Coelho da história" pelos acadêmicos.
"Villegagnon" é resultado de uma parceria original de um autor brasileiro e um francês. Vasco Mariz é diplomata e especialista em musicologia. Lucien Provençal é capitão-de-mar-e-guerra da Marinha da França.
Não são, portanto, especialistas em história do século 16 nem descobriram novidades importantes sobre a carreira do nobre francês nascido em Provins que fundou a primeira povoação européia na baía da Guanabara, em 1555.
Mas foram atrás de todas as fontes disponíveis sobre a vida do biografado e procuram corrigir o que consideram injustiças na avaliação desse experimento colonizatório.
O título do livro já provoca uma indagação: por que "Villegagnon", e não a grafia usual no Brasil, Villegaignon, com um "i" no meio?
Os autores argumentam que tiraram a letra porque os biógrafos franceses o fizeram e porque Villegagnon seria a forma moderna do nome.
Não é um bom argumento. Já que se trata de optar, é melhor usar a forma tradicional. Ele próprio assinava Villegaignon, e assim aparece o sobrenome nos livros que escreveu.
Em entrevista publicada na Folha, na quinta-feira passada, o historiador Jacques Le Goff afirma que a biografia se aproxima da "história total" -"por meio do personagem, chegar a uma explicação da sociedade daquele tempo".
Quando a biografia é de um personagem do século 16, muitas vezes a descrição da sociedade acaba tendo lugar de destaque simplesmente pela carência de documentos sobre o biografado.
Bons exemplos de livros assim são as biografias de Vasco da Gama escritas pelo indiano Sanjay Subrahmanyam e pela francesa Geneviève Bouchon ou a de Afonso de Albuquerque, também por ela.
O caso de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1572) é sintomático. Ele era um católico fervoroso e pouco flexível. Pertencia à Ordem de Malta, uma entidade meio religiosa, meio militar que exigia fidelidade e obediência cegas e voto de castidade de seus membros.
Esse personagem vive em uma época tumultuada por guerras de religião. A divisão da cristandade surgida com a reforma protestante vai se refletir na colônia fundada no Brasil. Conflitos entre protestantes e católicos são transplantados para os trópicos e ajudam a explicar o fracasso da colonização francesa.
O pano de fundo também explica o retrato muitas vezes péssimo de Villegaignon, "caluniado há quatro séculos por cronistas protestantes, sobretudo pelo livro de Jean de Léry, "Viagem à Terra do Brasil", cujas repetidas edições renovam periodicamente as acusações descabidas dos pastores calvinistas que fracassaram no Rio de Janeiro".
Em um dos interessantes apêndices, os autores citam exemplos dessas avaliações ao longo dos séculos. "Mais que um tirano, foi um monstro", escreveu Laercio Andrade em um livro de 1947. "Notável pela valentia e pelo saber", escreveu o historiador Capistrano de Abreu.
Mariz e Provençal matizaram o retrato de Villegaignon e, o que é verdadeiramente essencial, colocaram suas ações no contexto da época, algo que decididamente faltou em muito do que se escreveu sobre os 500 anos do Descobrimento.
O século 16 mereceria ser melhor divulgado por ter sido fundamental para a implantação européia no Brasil. Este livro deixa claro que sem a ajuda dos indígenas não teria sido possível à colônia francesa sobreviver. Sem aliados nativos, as minúsculas povoações portuguesas também teriam sido eliminadas.
Dadas suas dissensões internas, é fácil ver porque os franceses perderam. Mas não fica tão claro porque os portugueses venceram. O século 16, para Portugal, é o século do Oriente, da construção e apogeu do Estado da Índia; o Brasil era secundário. Quem sabe se Villegaignon tivesse um caráter diferente, a história poderia ser outra.



Villegagnon e a França Antártica - Uma Reavaliação    
Autores: Vasco Mariz e Lucien Provençal
Editoras: Nova Fronteira e Biblioteca do Exército
Quanto: R$ 20 (216 págs.)




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