São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2001

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"QORPO SANTO"

Livro desencava bobagens do autor

REYNALDO JARDIM

ESPECIAL PARA A FOLHA

É irresistível . Qualquer pesquisador de literatura, ao encontrar os calhamaços de um autor esdrúxulo, não resiste à tentação de expor o seu achado precioso.
Bem faria dona Denise se o Espírito Santo de seu nome contivesse os seus ímpetos arqueológicos. O possível leitor seria sido poupado da exaustiva e desagradável tarefa de, entre centenas de textos, salvar uma vintena de poemas dignos de apreciação.
Teria nos poupado de bobagens como esta:
"Minha Filha: Os bons são premiados!
Mas os maus são sempre castigados!
Não convém que siga; que seja a má!
Mas boa ou cristã e feliz será!".
Um festival moralista enfeitado por pontos dramáticos de exclamação. Não quero maltratar o leitor com centenas de outras citações, igualmente lastimáveis.
Uma seleção rigorosa não sei se satisfaria o espírito do autor. Certamente o colocaria em patamar mais elevado para ser visto e talvez respeitado.
Só os psicógrafos em transe conseguem realizar uma escrita automática de fluxo contínuo sem a intermediação racional. Afinal, eles são meros instrumentos a registrar. A literatura do absurdo, do fluxo da consciência, do nonsense é produto de um trabalho estruturado, mentado, crítico. Não é a resultante de mentes insanas, assim também como não o é o trabalho de Qorpo Santo.
A diferença é que o autor gaúcho é um desinformado professor de primeiro grau, confinado, vivendo a compulsão de escrever mecanicamente sobre o universo restrito que o circunda e limita. E nele não se aprofunda, fica no anedótico simplório e simplista de observações epidérmicas. Não nos fornece as imagens do inconsciente, mas a visão periférica de um literato tão compulsivo quanto pretensioso.
É absurdo confrontá-lo com os românticos. Qorpo apenas conhece a leitura avulsa de alguns deles e não pretende lhes fazer frente. Qualquer cotejo com os dadaístas e com Gregório de Matos -que dá mostras de haver lido- é improcedente. Insinuar que os modernistas de 22 lhe devem algo é apenas vontade de inseri-lo na história.
Não é um caso de patologia clínica, como disseram, mas fenômeno de patologia literária. Na história da esquizofrenia, já tivemos escritores e pintores geniais. Não é o caso de Qorpo Santo.
Sua pretensa reforma ortográfica é infantil e incapaz de chegar a soluções abrangentes. Pura bobagem de quem desconhece os rudimentos lexicográficos ou linguísticos. Nas poucas vezes em que revela sua concepção do mundo, demonstra uma criatura suburbana, conservadora, puritana, reacionária, preconceituosa:
"Assim, ô Judeus:
Do pecado-fugi;
Busca alma ganhar,
Que o Senhor tem para ti!"
(...)
"Quando falar das mulheres:
Dar-lhe-ei com pau,
A ver se o mingau
Das ventas tira:
Longe atira!"
(...)
"A língua de trapo,
De cobra ou sapo:
Está sempre palrando,
Está taramelando!".
Se o disparate da maioria dos textos é passível de interpretações e elucubrações celebradas pelos que se deleitam com o exótico, tudo bem. São capazes de servirem de tema para dissertações de mestrado, na qual até o efeito da menstruação das baleias no mar Vermelho é lícito.
É bem possível que Qorpo Santo venha a ser até coqueluche entre os eruditos nativos e europeus. Eles costumam gostar de extravagâncias sul-americanas. Será um prato cheio para qualquer desprevenido PhD.
Mergulhei fundo nesse mar embaralhadamente enciclopédico. Volto à tona com meia dúzia de lambaris.
Para produzir disparates geniais é preciso ser gênio. Positivamente, não é o caso do autor em pauta.



Poemas
  
Autor: Qorpo Santo
Organizadora: Denise Espírito Santo
Editora: Contra Capa Livraria Ltda.
Quanto: R$ 37 (382 págs.)




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