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RESENHA DA SEMANA
As idéias fora de si
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
A obra mais célebre de John
Reed (1887-1920) é a sua
própria vida. Não como expressão interior e romântica do indivíduo, mas pela sua identificação (também romântica) com
os movimentos históricos.
Reed projetou no que lhe era
exterior, e em princípio podia
não lhe concernir, como americano de família rica formado em
Harvard (acabou morrendo de
tifo na Rússia, onde foi enterrado com glórias de herói nacional), a expressão da sua interioridade e dos seus anseios pessoais.
Se não fosse por sua índole
aventureira, pela obsessão de estar sempre no centro da ação, o
jornalista e poeta, fundador do
Partido Comunista Americano,
amigo de Lênin e de Eugene
O'Neill, não teria escrito praticamente nada. Seus textos mais
conhecidos são testemunhos de
dois dos acontecimentos históricos mais importantes da primeira metade do século 20:
"México Insurgente" (1914), sobre a Revolução Mexicana, e "Os
Dez Dias Que Abalaram o Mundo" (1919), sobre a Revolução
Russa.
A maior originalidade de Reed
foi buscar sua "verdade interior" fora de si, embaralhando
literatura e militância, em vez de
se limitar a pôr uma a serviço da
outra. Elegeu o relato jornalístico como o gênero ideal para expressar seus pensamentos e
ideais pela simples exposição do
que testemunhava. Ao se pôr como observador no centro da
ação, não procurava mais emitir
suas idéias sobre determinados
acontecimentos, mas, antes, deixar que eles fossem a expressão
de suas idéias e de si mesmo no
mundo.
Esse romantismo engajado fica evidente já nas crônicas que
publicou, a partir de 1913, no
jornal socialista "The Masses" e
que foram selecionadas e reunidas no pequeno volume "A Filha da Revolução". Nelas, Reed
deixa o mundo à sua volta se expressar por oposições e denegações, deixa que os próprios personagens se encarreguem, com
suas falas e ações nem sempre
isentas de contradições e preconceitos, de demolir as hipocrisias e os maniqueísmos que
os sustentam e que o autor tanto
abomina.
Assim, o operário de esquerda
em luta por justiça e liberdade se
revela um machista inveterado,
que usa as mulheres e oprime a
filha em casa; o americano, que
se mostra amigável no exterior
ao encontrar um compatriota,
não passa de um racista truculento; e o homem que vive de
vender a ilusão do casamento
acaba se revelando um desiludido cujo casamento foi massacrado pelas injustiças sociais e
pela miséria. Reed faz do simples relato da existência desses
indivíduos a expressão de seu
repúdio ao machismo, ao racismo e às hipocrisias da sociedade
americana.
Ao mesmo tempo, mostra
uma atração natural e compassiva pelo submundo, por prostitutas e mendigos, como um retrato mais verdadeiro da América, mas sem nenhuma idealização. O mendigo que encontra (e
que pretende ajudar) em "Outro
Caso de Ingratidão", por exemplo, desmascara a índole filantrópica do narrador ao lhe dizer:
"Cê só tinha que salvar alguém
esta noite. Eu entendo. Tenho
um apetite como esse também.
Só que o meu é por mulher".
Ao se projetar no que vê à sua
volta e no outro, ao se engajar no
fluxo da história, elegendo o relato jornalístico como gênero literário em que o anseio pessoal
passa a falar pela voz do mundo,
Reed está na verdade tentando
se afastar da imagem que mais o
horroriza quando olha no espelho: a do americano médio, provinciano, xenófobo e ignorante,
em quem eventualmente esbarra em suas viagens como correspondente de guerra, no México
ou na Europa. Quando expõe os
maniqueísmos, os preconceitos
e as imagens feitas, é esse mesmo sujeito que ele está tentando
derrubar.
A tradução brasileira, contudo, comete algumas pequenas
gafes, que ficam especialmente
comprometedoras num texto
que denuncia e ironiza o autocentrismo e o imperialismo anglófonos. Por exemplo: onde se
lê "o Hague" ("the Hague", em
inglês), o leitor deveria ler simplesmente Haia, que é o nome
da cidade holandesa em português. Onde lê "Strassburg", deveria ler Estrasburgo. Onde lê
"Flanders", deveria ler Flandres.
E onde lê "Rostov-on-Don", deveria ler Rostov (do Don ou sobre o Don, como quiser, que é
um rio da Rússia).
A Filha da Revolução
Daughter of the Revolution and Other
Stories
Autor: John Reed
Tradutora: Laura Pinto Rebessi
Editora: Conrad
Quanto: R$ 17,50 (168 págs.)
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