São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

As idéias fora de si

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

A obra mais célebre de John Reed (1887-1920) é a sua própria vida. Não como expressão interior e romântica do indivíduo, mas pela sua identificação (também romântica) com os movimentos históricos.
Reed projetou no que lhe era exterior, e em princípio podia não lhe concernir, como americano de família rica formado em Harvard (acabou morrendo de tifo na Rússia, onde foi enterrado com glórias de herói nacional), a expressão da sua interioridade e dos seus anseios pessoais.
Se não fosse por sua índole aventureira, pela obsessão de estar sempre no centro da ação, o jornalista e poeta, fundador do Partido Comunista Americano, amigo de Lênin e de Eugene O'Neill, não teria escrito praticamente nada. Seus textos mais conhecidos são testemunhos de dois dos acontecimentos históricos mais importantes da primeira metade do século 20: "México Insurgente" (1914), sobre a Revolução Mexicana, e "Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo" (1919), sobre a Revolução Russa.
A maior originalidade de Reed foi buscar sua "verdade interior" fora de si, embaralhando literatura e militância, em vez de se limitar a pôr uma a serviço da outra. Elegeu o relato jornalístico como o gênero ideal para expressar seus pensamentos e ideais pela simples exposição do que testemunhava. Ao se pôr como observador no centro da ação, não procurava mais emitir suas idéias sobre determinados acontecimentos, mas, antes, deixar que eles fossem a expressão de suas idéias e de si mesmo no mundo.
Esse romantismo engajado fica evidente já nas crônicas que publicou, a partir de 1913, no jornal socialista "The Masses" e que foram selecionadas e reunidas no pequeno volume "A Filha da Revolução". Nelas, Reed deixa o mundo à sua volta se expressar por oposições e denegações, deixa que os próprios personagens se encarreguem, com suas falas e ações nem sempre isentas de contradições e preconceitos, de demolir as hipocrisias e os maniqueísmos que os sustentam e que o autor tanto abomina.
Assim, o operário de esquerda em luta por justiça e liberdade se revela um machista inveterado, que usa as mulheres e oprime a filha em casa; o americano, que se mostra amigável no exterior ao encontrar um compatriota, não passa de um racista truculento; e o homem que vive de vender a ilusão do casamento acaba se revelando um desiludido cujo casamento foi massacrado pelas injustiças sociais e pela miséria. Reed faz do simples relato da existência desses indivíduos a expressão de seu repúdio ao machismo, ao racismo e às hipocrisias da sociedade americana.
Ao mesmo tempo, mostra uma atração natural e compassiva pelo submundo, por prostitutas e mendigos, como um retrato mais verdadeiro da América, mas sem nenhuma idealização. O mendigo que encontra (e que pretende ajudar) em "Outro Caso de Ingratidão", por exemplo, desmascara a índole filantrópica do narrador ao lhe dizer: "Cê só tinha que salvar alguém esta noite. Eu entendo. Tenho um apetite como esse também. Só que o meu é por mulher".
Ao se projetar no que vê à sua volta e no outro, ao se engajar no fluxo da história, elegendo o relato jornalístico como gênero literário em que o anseio pessoal passa a falar pela voz do mundo, Reed está na verdade tentando se afastar da imagem que mais o horroriza quando olha no espelho: a do americano médio, provinciano, xenófobo e ignorante, em quem eventualmente esbarra em suas viagens como correspondente de guerra, no México ou na Europa. Quando expõe os maniqueísmos, os preconceitos e as imagens feitas, é esse mesmo sujeito que ele está tentando derrubar.
A tradução brasileira, contudo, comete algumas pequenas gafes, que ficam especialmente comprometedoras num texto que denuncia e ironiza o autocentrismo e o imperialismo anglófonos. Por exemplo: onde se lê "o Hague" ("the Hague", em inglês), o leitor deveria ler simplesmente Haia, que é o nome da cidade holandesa em português. Onde lê "Strassburg", deveria ler Estrasburgo. Onde lê "Flanders", deveria ler Flandres. E onde lê "Rostov-on-Don", deveria ler Rostov (do Don ou sobre o Don, como quiser, que é um rio da Rússia).



A Filha da Revolução
Daughter of the Revolution and Other Stories
   
Autor: John Reed
Tradutora: Laura Pinto Rebessi
Editora: Conrad
Quanto: R$ 17,50 (168 págs.)




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