São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Tigre, dragão e cabeças cortadas

Não entramos no Oscar de filme estrangeiro. Cabe a pergunta: e daí? A não indicação não diminui em nada as (muitas) qualidades de "Eu Tu Eles". Outros belos filmes também não foram convidados para aquele banquete essencialmente americano. É o caso do hipnótico "Amor à Flor da Pele", de Wong Kar-Wai. Depois, não há por que ficarmos nos norteando por um espelho que não é nosso e que se interessa cada vez menos pelo que vem de outras latitudes.
Sintomaticamente, os norte-americanos acabam de eleger um presidente que nunca teve a curiosidade de olhar além das suas fronteiras. Jamais foi à Europa e não chama gregos de troianos. Chama de grecianos mesmo.
Na área cinematográfica, os problemas não são gramaticais, mas nem por isso menores. Com o sucesso crescente do Sundance, os independentes norte-americanos acabaram tomando pouco a pouco o espaço já diminuto de exibição que cabia ao cinema estrangeiro. Este efeito perverso tem se agravado. Algumas salas "de arte" nova-iorquinas passam hoje filmes de grande orçamento, com atores conhecidos.
Por tudo isso, as recentes indicações ao Oscar não deixam de revelar um verdadeiro paradoxo. Num quadro claramente antagônico ao cinema estrangeiro, um filme falado em mandarim abocanhou um número surpreendente de indicações -incluindo de melhor filme. Também bateu todos os recordes de bilheteria de filme estrangeiro nos EUA -o chamado "box office", o barômetro oficial de qualidade segundo Hollywood. Como é que isso foi acontecer?
"O Tigre e o Dragão" é o encontro improvável de gêneros narrativos distintos: o filme de espada made in Hong Kong (conhecido como Wu Xia-pian), o melodrama chinês e o cinema-espetáculo americano. Por incrível que pareça, a mistura dá certo, sobretudo porque Ang Lee teve a inteligência de subverter todas as regras desses gêneros. O resultado é um filme original, inclassificável.
Para começar, Lee implode a característica essencialmente masculina do filme de espada. As espadas, aqui, são empunhadas por jovens mulheres que lutam contra uma sociedade arcaica. É o contrário do que acontece em "A Lâmina" ou outros clássicos do gênero dirigidos por Tsui Hark.
Por uma vez, o espetáculo em um filme de ação não é garantido pelo número de cabeças cortadas. Há algo de Meliès, de invenção pura, neste "O Tigre e o Dragão". Fato raro, Lee põe os efeitos especiais e a tecnologia a serviço daquilo que é poético e humano. São lindos os corpos que, liberados do efeito da gravidade, flutuam acima dos telhados ou combatem no topo das árvores.
As regras rígidas dos roteiros hollywoodianos também vão para o espaço. O filme começa com longos diálogos, e não com a explosão de carros e gente indefesa. Há um flashback que explica, durante mais de dez minutos, quem é um personagem que entra tardiamente na história -algo impensável num roteiro clássico. Ang Lee desenvolve vários caminhos e ainda se dá o luxo de falar, por trás de tanta ação, de um dos seus temas centrais: a iniciação sexual. No caso, com palitinhos (chopsticks).
É evidente que essas opções narrativas, aliadas à qualidade lírica e épica do filme, não bastam para explicar as dez indicações que "O Tigre e o Dragão" recebeu. Para isso, é necessário entender o filme também como um western, rodado numa geografia tão mítica quanto à dos clássicos de John Ford. Ang Lee fundiu as qualidades do cinema de Hong Kong com a melhor tradição do cinema americano. É o que torna seu filme palatável para Hollywood.
Abro aqui um parêntesis. Há quase um ano, estive com James Schamus, co-roteirista e produtor-executivo de "O Tigre e o Dragão", quando o filme saía da fase de pós-produção. Schamus é companheiro de estrada de Ang Lee desde que este deixou Taiwan para morar nos Estados Unidos. Ele me mostrou o trailer de "O Tigre e o Dragão", que tinha acabado de ficar pronto. Já era o prenúncio de um filme extraordinário.
Mas havia dúvidas no ar: será que o público iria aceitar os combates aéreos do filme, a ausência de sangue e de violência etc? Mesmo para um homem com a inteligência e experiência de Schamus, professor de cinema da Universidade de Columbia, a resposta não era clara. Os dois últimos filmes de Lee, "Tempestade de Gelo" e "Cavalgada com o Diabo", não haviam sido bem recebidos. A apreensão só foi se dissipar com a ovação recebida no Festival de Cannes. Hoje, "O Tigre e o Dragão" é um sucesso no mundo inteiro, com exceção da China. Santo que sai de casa não faz milagre.
Um filme falado em mandarim pode ganhar o Oscar? Improvável. No dia 25 de março, "O Tigre..." vai enfrentar a truculência de "Gladiador". Este último é uma obra, conceda-se, premonitória: anuncia uma era bélica e intervencionista, em que o bem e o mal estão confinados em áreas estanques.
Independentemente do resultado, Ang Lee já terá feito o mais difícil: alargado fronteiras, direcionando o foco para filmes que acreditam na imaginação e que não são necessariamente falados em inglês. Um avanço e tanto.
P.S. O merchandising da Fedex e das bolas Wilson naufragou. Pelo menos isso.


Texto Anterior: Cinema: Festival de curtas dará até R$ 10 mil
Próximo Texto: Artes plásticas: Ousadia marca 50 anos da Bienal de SP
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.