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WALTER SALLES
Tigre, dragão e cabeças cortadas
Não entramos no Oscar
de filme estrangeiro. Cabe a
pergunta: e daí? A não indicação
não diminui em nada as (muitas)
qualidades de "Eu Tu Eles". Outros belos filmes também não foram convidados para aquele banquete essencialmente americano.
É o caso do hipnótico "Amor à
Flor da Pele", de Wong Kar-Wai.
Depois, não há por que ficarmos
nos norteando por um espelho
que não é nosso e que se interessa
cada vez menos pelo que vem de
outras latitudes.
Sintomaticamente, os norte-americanos acabam de eleger um
presidente que nunca teve a curiosidade de olhar além das suas
fronteiras. Jamais foi à Europa e
não chama gregos de troianos.
Chama de grecianos mesmo.
Na área cinematográfica, os
problemas não são gramaticais,
mas nem por isso menores. Com o
sucesso crescente do Sundance, os
independentes norte-americanos
acabaram tomando pouco a pouco o espaço já diminuto de exibição que cabia ao cinema estrangeiro. Este efeito perverso tem se
agravado. Algumas salas "de arte" nova-iorquinas passam hoje
filmes de grande orçamento, com
atores conhecidos.
Por tudo isso, as recentes indicações ao Oscar não deixam de
revelar um verdadeiro paradoxo.
Num quadro claramente antagônico ao cinema estrangeiro, um
filme falado em mandarim abocanhou um número surpreendente de indicações -incluindo de
melhor filme. Também bateu todos os recordes de bilheteria de filme estrangeiro nos EUA -o chamado "box office", o barômetro
oficial de qualidade segundo
Hollywood. Como é que isso foi
acontecer?
"O Tigre e o Dragão" é o encontro improvável de gêneros narrativos distintos: o filme de espada
made in Hong Kong (conhecido
como Wu Xia-pian), o melodrama chinês e o cinema-espetáculo
americano. Por incrível que pareça, a mistura dá certo, sobretudo
porque Ang Lee teve a inteligência de subverter todas as regras
desses gêneros. O resultado é um
filme original, inclassificável.
Para começar, Lee implode a
característica essencialmente
masculina do filme de espada. As
espadas, aqui, são empunhadas
por jovens mulheres que lutam
contra uma sociedade arcaica. É
o contrário do que acontece em
"A Lâmina" ou outros clássicos
do gênero dirigidos por Tsui
Hark.
Por uma vez, o espetáculo em
um filme de ação não é garantido
pelo número de cabeças cortadas.
Há algo de Meliès, de invenção
pura, neste "O Tigre e o Dragão".
Fato raro, Lee põe os efeitos especiais e a tecnologia a serviço daquilo que é poético e humano. São
lindos os corpos que, liberados do
efeito da gravidade, flutuam acima dos telhados ou combatem no
topo das árvores.
As regras rígidas dos roteiros
hollywoodianos também vão para o espaço. O filme começa com
longos diálogos, e não com a explosão de carros e gente indefesa.
Há um flashback que explica, durante mais de dez minutos, quem
é um personagem que entra tardiamente na história -algo impensável num roteiro clássico.
Ang Lee desenvolve vários caminhos e ainda se dá o luxo de falar,
por trás de tanta ação, de um dos
seus temas centrais: a iniciação
sexual. No caso, com palitinhos
(chopsticks).
É evidente que essas opções narrativas, aliadas à qualidade lírica
e épica do filme, não bastam para
explicar as dez indicações que "O
Tigre e o Dragão" recebeu. Para
isso, é necessário entender o filme
também como um western, rodado numa geografia tão mítica
quanto à dos clássicos de John
Ford. Ang Lee fundiu as qualidades do cinema de Hong Kong com
a melhor tradição do cinema
americano. É o que torna seu filme palatável para Hollywood.
Abro aqui um parêntesis. Há
quase um ano, estive com James
Schamus, co-roteirista e produtor-executivo de "O Tigre e o Dragão", quando o filme saía da fase
de pós-produção. Schamus é companheiro de estrada de Ang Lee
desde que este deixou Taiwan para morar nos Estados Unidos. Ele
me mostrou o trailer de "O Tigre e
o Dragão", que tinha acabado de
ficar pronto. Já era o prenúncio de
um filme extraordinário.
Mas havia dúvidas no ar: será
que o público iria aceitar os combates aéreos do filme, a ausência
de sangue e de violência etc? Mesmo para um homem com a inteligência e experiência de Schamus,
professor de cinema da Universidade de Columbia, a resposta não
era clara. Os dois últimos filmes
de Lee, "Tempestade de Gelo" e
"Cavalgada com o Diabo", não
haviam sido bem recebidos. A
apreensão só foi se dissipar com a
ovação recebida no Festival de
Cannes. Hoje, "O Tigre e o Dragão" é um sucesso no mundo inteiro, com exceção da China. Santo que sai de casa não faz milagre.
Um filme falado em mandarim
pode ganhar o Oscar? Improvável. No dia 25 de março, "O Tigre..." vai enfrentar a truculência
de "Gladiador". Este último é
uma obra, conceda-se, premonitória: anuncia uma era bélica e
intervencionista, em que o bem e
o mal estão confinados em áreas
estanques.
Independentemente do resultado, Ang Lee já terá feito o mais difícil: alargado fronteiras, direcionando o foco para filmes que
acreditam na imaginação e que
não são necessariamente falados
em inglês. Um avanço e tanto.
P.S. O merchandising da Fedex
e das bolas Wilson naufragou. Pelo menos isso.
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