São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

À luz de Goya

Jean-Claude Carrière fala à Folha sobre "Os Fantasmas de Goya", roteiro e romance sobre a Inquisição na visão do famoso pintor espanhol

DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Leia o livro; veja o filme." Aos 75 anos, Jean-Claude Carrière, célebre roteirista de filmes do diretor espanhol Luis Buñuel, como "A Bela da Tarde" (1967) e "Este Obscuro Objeto do Desejo" (1977), inverteu a fórmula: escreveu um roteiro e, a partir dele, um romance, "Os Fantasmas de Goya", que chega agora ao Brasil.
Ele lembra à Folha que já adaptou muitos romances, mas diz que é a primeira vez em sua vida que passa de um escrito feito para o cinema a um outro, voltado para o leitor de livros.
Com Javier Bardem, Natalie Portman e o sueco Stellan Skarsgard no elenco, o filme "Os Fantasmas de Goya" retrata a vida do pintor espanhol entre os horrores da Inquisição e os desdobramentos da Revolução Francesa. A exemplo do que aconteceu na França, o livro que Carrière assina com Milos Forman também chega ao Brasil bem antes de a trama (dirigida pelo mesmo Forman) estrear nos cinemas do país. O lançamento aqui está previsto para 7 de setembro.
Carrière começou como escritor aos 23 anos com a ficção "Lézard" (lagarto), que vendeu 700 exemplares, e que ele descarta reeditar. De seu apartamento em Paris, o roteirista e escritor francês fala sobre os caminhos do cinema e sobre a experiência inédita de "Os Fantasmas de Goya".

 

FOLHA - Como foi escrito o livro?
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE -
Enquanto escrevia o roteiro com Milos, pensei que poderíamos coletar material adicional para um romance. E, quando Milos iniciou a filmagem, comecei a escrever o romance. Um roteiro para um filme tem 90 páginas, o romance que escrevemos tem mais de 300 páginas. É extraordinário, não poderia dizer o que sairia dessa operação, é estranho. Não sei dizer, ao fim, se escrevi um romance ou um roteiro. Ou os dois.
Na história, há duas épocas, separadas por 16 anos. O personagem principal, que se chama Lorenzo (Bardem), ao final da primeira época sai da Espanha para a França. E volta à Espanha 16 anos depois como representante oficial do poder. No filme, não se diz nada do que ele fez ao longo desses anos, mas no romance há 50 páginas para contar isso. Para mim foi muito interessante pensar, criar como poderia ter sobrevivido um espanhol em meio à França revolucionária, como pôde conhecer as novas idéias e chegar a aproximar-se de Napoleão.

FOLHA - De que forma as filmagens influenciaram na concepção do romance e vice-versa?
CARRIÈRE -
Estive em comunicação com Milos durante toda a filmagem, por três ou quatro meses, e terminei o livro dois meses após a conclusão, ou seja, me tomou uns seis meses. Tive que falar com historiadores espanhóis para recompor muitas coisas. O roteiro de um filme como "Os Fantasmas de Goya" é sempre uma simplificação do processo histórico. Em um romance, isso não é aceitável.
Na minha idade e tendo escrito muitos filmes históricos, me encontrei frente a um desafio totalmente novo. Estou sempre dando oficinas de roteiro e, quando falamos da adaptação de um romance, sempre digo que chega um momento em que o que temos que fazer é um filme e esquecer que estamos adaptando um livro, ou terminamos com algo como um filme ilustrado, e isso é o pior que pode acontecer. Tive a oportunidade de fazer o contrário, que foi como escrever o livro que poderíamos ter tido para adaptar, antes de fazer o filme. Foi muito interessante tecnicamente. Houve um ir-e-vir.
Conhecer os atores me ajudou muito, do mesmo modo como, às vezes, durante a filmagem, eu ia visitar Milos na Espanha para contar detalhes que eu havia encontrado ou imaginado ao escrever a novela. E colocamos alguns no livro, nos diálogos, houve um intercâmbio. A história é dos dois, e o romance, também. Poderia falar por horas sobre a experiência.

FOLHA - Onde e como nasceu "Os Fantasmas de Goya"?
CARRIÈRE -
Imaginamos a história na Espanha. Milos não conhecia bem a Espanha, e eu, sim, claro, trabalhando com Buñuel durante tantos anos.
Encontramo-nos no Festival de Cannes há três anos, e disse a ele: "Se você quiser, podemos agora mesmo alugar um carro e ir dormir em Barcelona". E o fizemos. Fomos a Barcelona e de lá pouco a pouco viajamos por Aragão, Castela, Sevilha, e eu mostrava a Milos tudo o que eu conhecia. Como nós estávamos sozinhos, tínhamos tempo de falar e pensar em uma história, e assim nasceu o filme. Depois de duas semanas, tomamos a decisão de começar realmente a trabalhar no filme, e então fui à casa de Milos nos Estados Unidos.

FOLHA - O sr. costuma dizer que, assim como o mundo, o cinema não pode ficar parado...
CARRIÈRE -
Não podemos mudar o mundo, mas não podemos impedir o mundo de mudar. Essa é uma das frases de minha vida, e o mesmo se pode dizer do cinema. Ele muda pouco a pouco, apesar do desejo de muita gente de que ele se paralise e se fixe em um estado definitivo. Vou de vez em quando ao México, e há um novo cinema mexicano que adoro. Encontrei Guillermo del Toro e vi "O Labirinto do Fauno", filme apaixonante, com uma mistura de linguagens que me interessa, e as coisas sempre caminham assim, de modo inesperado. Há dez anos, quem diria que o cinema mexicano se tornaria um dos melhores do mundo? Minha mulher é iraniana. Há 25 anos quem poderia dizer que o cinema iraniano seria o melhor do mundo? Ninguém. E tanto melhor. Tomara que ele seja sempre imprevisível.


Texto Anterior: Horário nobre na TV Aberta
Próximo Texto: Saiba mais: Pintor é tido como primeiro dos modernos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.