São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livros

"Jóia" de Paulo Emílio volta polida

Reedição de "Três Mulheres de Três PPPês" tem trechos suprimidos, correção de distorções da 2ª edição e fortuna crítica

Volume traz três novelas do crítico, que morreu pouco depois de sua publicação, em 1977; histórias ironizam a "urbanidade paulista"


ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Três Mulheres de Três PPPês", pequeno livro de ficção do crítico Paulo Emílio Sales Gomes, lançado originalmente pela Perspectiva, em 1977, mesmo ano da morte de seu autor, tem agora uma reedição caprichada pela Cosacnaify. Com organização de Carlos Augusto Calil, a reedição corrige as distorções da atualização ortográfica da segunda edição, saída pela Nova Fronteira em 1982, tal como já o notara o filólogo Celso Luft.
A nova edição traz ainda um posfácio esclarecedor do próprio Calil, no qual se revelam dois textos suprimidos da edição original, além de uma excelente fortuna crítica, que recupera os textos de destacados críticos que se debruçaram sobre o livro. Merecidamente, pois é, de fato, uma pequena jóia de uma literatura sabidamente parca de jóias.

Urbanidade paulista
Apesar da aparência volumosa da nova edição, o livro é composto de três novelas breves, situadas em São Paulo, dos anos 40 aos anos da repressão militar, tendo como narrador um sujeito bem de vida, paulistano do Alto de Pinheiros, que faz tratamento de artrite em Águas de São Pedro, quando isso era fino. Aplica-se também em manter uma urbanidade de "nível paulista", o que, no registro irônico do livro, equivale a dizer insossa, impostada e provinciana, conquanto se gabe de esclarecida e internacional.
O traço mais peculiar do narrador, entretanto, é o obstinado horror pelo seu próprio nome, Polydoro, que o faz exigir de sua mulher que não o pronuncie jamais. De fato, para cada Polydoro, que na seqüência das três novelas, apresenta-se moço, homem maduro ou já no limiar da velhice, há uma mulher forte e de nome postiço -Helena, Hermengarda e Ela-, com traços de classe inferior, vontade imperiosa e desejo de ascensão social.
É quase só isso que podemos saber com certeza das narrativas, pois o desenvolvimento bem-humorado de cada uma delas se organiza de modo a efetuar uma peripécia dupla.
Dessa dupla reversão das expectativas se ocupa sobretudo a narração, num registro verbal que ostenta elegância cultivada, domínio de língua e diletantismo científico, mas cujo efeito é o riso do leitor face ao tom afetado e à convivência do sentencioso, do frívolo e do obliquamente obsceno.
A certa altura, no desenvolvimento das novelas, ocorre a descoberta pelo narrador de que a mulher amada não corresponde em nada à imagem que faz dela, boa ou má, seja porque o trai, seja porque o ama com devoção, quando não o suspeita, ou mesmo supõe o contrário. Até aí, nada demais.
O extraordinário é que essa reviravolta não decorre de nenhum flagrante ou evidência cabal no interior da ação narrada. O narrador admite o seu engano apenas em função de uma declaração furiosa da mulher ou da leitura de um seu diário supostamente íntimo. Essa insuficiência da autoridade do que é dito, aliás, trai a mais profunda filiação machadiana do romance.
Após o susto dessa primeira revelação, quando o narrador se esforça para se recompor com a imagem que faz de si mesmo, se abate sobre ele um segundo golpe: um novo discurso, ou a descoberta de um outro diário da mulher simplesmente desmonta a confissão anterior. Ainda desta vez, tudo o que o narrador crédulo tem para se assegurar da fidedignidade da confissão, pois imediatamente se convence também da verdade dessa segunda revelação, é a palavra da mulher infiel.
Mas há agora uma diferença. A segunda peripécia leva a narração a um ponto sem retorno: aquele em que o narrador tem de se confrontar com uma falta original, invencível, que penetra sem defesa todas as fábulas inconsistentes de sua vida.
Neste momento, os antigos fundamentos de superioridade de classe e de sentimento de orgulho paulista, não apenas não bastam, como tornam tudo mais ridículo e fruto de um obstinado delírio. No limite, o que confirma os testemunhos mais ou menos inverossímeis das mulheres é mesmo a repulsa do próprio nome, com o qual tem finalmente de se defrontar, despido das falsas seguranças de sua vida banal. É tarde, entretanto: já nada no narrador o distingue do vazio do nome vão; já nada pode salvá-lo do horror do vazio do nome.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)

TRÊS MULHERES DE TRÊS PPPÊS     
Autor: Paulo Emílio Sales Gomes
Organização e Posfácio: Carlos Augusto Calil
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 45 (200 págs.)

Leia trecho


Texto Anterior: Música: Peaches faz shows em São Oaulo e no Rio
Próximo Texto: Saiba mais: Cosacnaify lançará obra completa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.