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DISCO CRÍTICA
Realidade pisca em "Estrela da Vida"
da Reportagem Local
O retorno tardio de Marlene é
acontecimento cultural de altíssima relevância no Brasil de 1999.
Protagonista de um rol assustador
de serviços prestados à música popular brasileira, ela volta, depois
de uma eternidade, a oferecer
préstimos à velha causa.
O que vinha sobrando dos 21
anos de silêncio -desde que lançou uma "Antologia da Marchinha" que casava marchas de João
de Barro, Assis Valente, Joubert de
Carvalho, Lamartine Babo, Noel
Rosa, Chico Buarque (!) e Tom Jobim (!!)- era quase só folclore.
No imaginário atual, Marlene é
só a rival de Emilinha Borba -algo que, aos ouvidos surrados de
hoje, pode parecer uma coisa Xuxa
versus Angélica. Nada disso.
Marlene surgiu, por volta de 49,
como uma porta-voz de fracos e
oprimidos, dando vazão aos reclames sociais -"Lata d'Água", "Zé
Marmita", "Sapato de Pobre"-
do compositor Luís Antônio e seus
parceiros.
Um só exemplo, de "Patinete no
Morro": "Papai Noel não sobe na
favela/ o morro também tem garotada/ eu botei o meu tamanco na
janela/ e de manhã não tinha nada/
patinete lá no morro/ é um cabo de
vassoura/ e tampa de goiabada/ e é
assim que vai crescendo o cidadão/
vendo morrer ilusão sobre ilusão/
você condena sem pedir perdão ao
céu/ é triste um garoto pobre crescer sem Papai Noel".
Não havia glamour à vista, assim
como não havia em suas versões
gritadas das críticas alegres-tristes
de Luiz Gonzaga ("Qui Nem Jiló",
"Dona Vera Tricotando") e das sátiras suburbanas de José Maria de
Abreu ("Tome Polca", "Esposa
Modelo", "Nego, Meu Amor"
-essa ela cantava com Ivon Curi).
O glamour veio como efeito colateral, é verdade, mas Marlene nunca perdeu de vista -como acontece a tantos artistas- a percepção
da vida real . Respondeu aos tempos sempre dialogando com eles.
Na virada arrasa-quarteirão dos
60 para os 70, procurou manter-se
viva aliando-se a homens como
Fauzi Arap e Hermínio Bello de
Carvalho, pensadores da interseção música-teatro.
Sob a atenção deles, abriu olhos
uma vez mais à realidade e cantou
Jorge Ben, Marcos Valle, Caetano
Veloso, João Bosco, Vital Lima,
Taiguara, Milton Nascimento,
Gonzaguinha, Zé Rodrix.
Não tirou partido estético, apenas se manteve o que era e aceitou
a variedade que se estabelecia.
Fundou, é possível pensar, a veia
"eclética" das cantoras brasileiras,
isso nos tempos em que ser eclético não era ser cego perdido em tiroteio.
Não bastava fazê-lo -o Brasil
não gosta mesmo de realidade-, e
caiu no canto do salão MPB. "Estrela da Vida", sua volta, é espantoso porque a flagra como exemplo raro de artista que sabe se
adaptar à passagem do tempo.
O disco se apóia numa banda de
peso, nada apegada a convenções
de uma "intérprete à moda antiga". Bateria, guitarras e teclados
duelam com o instrumental do
samba, para fazer... samba (e aí
quase vai escapando que Marlene é
mais rival de Elza Soares que de
Emilinha, até no repertório
-"Meu Guri", de Chico, grita tão
lindo quanto gritava no disco mais
recente de Elza).
A longa ausência do estúdio se
faz sentir, claro, como na modulação rascante das letras "r" ou na
dramaticidade exagerada, expressionista, de "Geni e o Zepelim".
Mas, de resto, ela engrandece autores não unânimes, como João
Bosco e Aldir Blanc ("O Ronco da
Cuíca") ou Gonzaguinha ("Galope") -não é esse mesmo o trabalho do intérprete?-, tanto quanto
se esbalda na genialidade antiga
que vai de Luís Antônio ("Apito no
Samba") a Brecht e Weill ("Surabaya Johnny"). E a realidade pisca
o olho ainda uma vez.
(PAS)
Disco: Estrela da Vida
Artista: Marlene
Lançamento: Leblon Records
Quanto: R$ 18, em média
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