São Paulo, Quarta-feira, 17 de Fevereiro de 1999
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DISCO CRÍTICA

Realidade pisca em "Estrela da Vida"

da Reportagem Local

O retorno tardio de Marlene é acontecimento cultural de altíssima relevância no Brasil de 1999. Protagonista de um rol assustador de serviços prestados à música popular brasileira, ela volta, depois de uma eternidade, a oferecer préstimos à velha causa.
O que vinha sobrando dos 21 anos de silêncio -desde que lançou uma "Antologia da Marchinha" que casava marchas de João de Barro, Assis Valente, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo, Noel Rosa, Chico Buarque (!) e Tom Jobim (!!)- era quase só folclore.
No imaginário atual, Marlene é só a rival de Emilinha Borba -algo que, aos ouvidos surrados de hoje, pode parecer uma coisa Xuxa versus Angélica. Nada disso.
Marlene surgiu, por volta de 49, como uma porta-voz de fracos e oprimidos, dando vazão aos reclames sociais -"Lata d'Água", "Zé Marmita", "Sapato de Pobre"- do compositor Luís Antônio e seus parceiros.
Um só exemplo, de "Patinete no Morro": "Papai Noel não sobe na favela/ o morro também tem garotada/ eu botei o meu tamanco na janela/ e de manhã não tinha nada/ patinete lá no morro/ é um cabo de vassoura/ e tampa de goiabada/ e é assim que vai crescendo o cidadão/ vendo morrer ilusão sobre ilusão/ você condena sem pedir perdão ao céu/ é triste um garoto pobre crescer sem Papai Noel".
Não havia glamour à vista, assim como não havia em suas versões gritadas das críticas alegres-tristes de Luiz Gonzaga ("Qui Nem Jiló", "Dona Vera Tricotando") e das sátiras suburbanas de José Maria de Abreu ("Tome Polca", "Esposa Modelo", "Nego, Meu Amor" -essa ela cantava com Ivon Curi).
O glamour veio como efeito colateral, é verdade, mas Marlene nunca perdeu de vista -como acontece a tantos artistas- a percepção da vida real . Respondeu aos tempos sempre dialogando com eles.
Na virada arrasa-quarteirão dos 60 para os 70, procurou manter-se viva aliando-se a homens como Fauzi Arap e Hermínio Bello de Carvalho, pensadores da interseção música-teatro.
Sob a atenção deles, abriu olhos uma vez mais à realidade e cantou Jorge Ben, Marcos Valle, Caetano Veloso, João Bosco, Vital Lima, Taiguara, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Zé Rodrix.
Não tirou partido estético, apenas se manteve o que era e aceitou a variedade que se estabelecia. Fundou, é possível pensar, a veia "eclética" das cantoras brasileiras, isso nos tempos em que ser eclético não era ser cego perdido em tiroteio.
Não bastava fazê-lo -o Brasil não gosta mesmo de realidade-, e caiu no canto do salão MPB. "Estrela da Vida", sua volta, é espantoso porque a flagra como exemplo raro de artista que sabe se adaptar à passagem do tempo.
O disco se apóia numa banda de peso, nada apegada a convenções de uma "intérprete à moda antiga". Bateria, guitarras e teclados duelam com o instrumental do samba, para fazer... samba (e aí quase vai escapando que Marlene é mais rival de Elza Soares que de Emilinha, até no repertório -"Meu Guri", de Chico, grita tão lindo quanto gritava no disco mais recente de Elza).
A longa ausência do estúdio se faz sentir, claro, como na modulação rascante das letras "r" ou na dramaticidade exagerada, expressionista, de "Geni e o Zepelim".
Mas, de resto, ela engrandece autores não unânimes, como João Bosco e Aldir Blanc ("O Ronco da Cuíca") ou Gonzaguinha ("Galope") -não é esse mesmo o trabalho do intérprete?-, tanto quanto se esbalda na genialidade antiga que vai de Luís Antônio ("Apito no Samba") a Brecht e Weill ("Surabaya Johnny"). E a realidade pisca o olho ainda uma vez. (PAS)




Disco: Estrela da Vida
Artista: Marlene
Lançamento: Leblon Records
Quanto: R$ 18, em média




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