São Paulo, Quarta-feira, 17 de Fevereiro de 1999
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MÚSICA
A "Rainha do Rádio" volta aos estúdios e grava disco "para deixar guardadinho, se alguém quiser lembrar de Marlene", como disse à Folha
Marlene quebra isolamento de 21 anos

André Durão/Folha Imagem
A cantora Marlene fala na Universidade Estácio de Sá (RJ); depois de 20 nos, ela volta ao disco com 'Estrela da Vida'


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Estrela do rádio na década de 50, a cantora Marlene rompe um isolamento de mais de 20 anos e volta ao disco com "Estrela da Vida", lançado sem nenhum alarde pela minúscula Leblon Records.
"Rainha do Rádio" em 1949, rainha de outros Carnavais e eterna inimiga de Emilinha Borba, ela relativiza o saudosismo e não cai na tentação de regravar clássicos que ajudou a fincar no imaginário da MPB, como "Lata d'Água", "Mora na Filosofia" e "Sapato de Pobre".
Em vez disso, faz um apanhado de tudo que deixou espalhado por shows e gravações ocasionais nos últimos 20 anos -o que resulta em Chico Buarque da fase "Ópera do Malandro" (79) e posterior, Bertolt Brecht & Kurt Weill, até Roberto & Erasmo Carlos.
Nascida paulistana em 1924 e radicada no Rio de Janeiro desde 1943, Vitória Bonaiutti (Marlene foi empréstimo artístico da Dietrich) ainda brinca de esconder a idade. "Já passei dos 21 há algum tempo... Há bastante tempo... Diga que são 30 e uns, e mais alguns, e muitos tantos alguns..."
Ainda ávida por música, falou à Folha por telefone de sua casa, no habitat natural Copacabana, num intervalo entre uma sessão de maquiagem e um talk-show para alunos de uma faculdade carioca. "Gostaria de estar cantando todos os dias, como no início de minha carreira", resume-se.

Folha - Por que a sra. ficou 20 anos sem gravar um disco solo?
Marlene -
Não fiquei 20 anos sem gravar. Gravei com Almir Chediak, fiz gravações culturais, de Custódio Mesquita, Adoniran Barbosa, Noel Rosa. Quanto a trabalhos solo, eu não via tanta necessidade. Viajava demais, era muito requisitada sem ter disco na praça. De repente, fui observando que o trabalho escasseou, que as pessoas não estavam mais procurando tanto.
Folha - Tem a ver também com o fato de que as grandes gravadoras passaram a rejeitar sua geração?
Marlene -
Não, nunca senti isso. Na grande época, para eu fazer um disco, eles tinham que me buscar em casa. Eu não ligava realmente para disco, sempre fui assim. De repente, senti necessidade. E senti necessidade também de registrar músicas que cantei nesses 20 anos e que não havia registrado. É para deixar guardadinho, se alguém quiser lembrar de Marlene.
Folha - Foi preciso uma pequena gravadora para fazer esse registro.
Marlene -
As gravadoras hoje não têm interesse em ninguém, a não ser na moda, no que está fazendo sucesso no momento. Agora é música sertaneja e pagode. Eles não têm muito interesse em qualidade. Querem sucesso para vendagem.
Folha - Mas isso era diferente nos anos 50? Você não era a moda?
Marlene -
Não, não era isso, não. De jeito nenhum. A preocupação das estações de rádio era tão grande que nenhum artista entrava para o rádio se não fizesse teste. Muitos artistas de nome e sucesso não foram aprovados, entraram muito tempo depois. Não vou citar nomes, mas aconteceu isso.
A exigência era muito maior. Hoje, se você faz qualquer coisinha diferente, eles dão oportunidade. Já há uns 20 anos, eu estava um dia no escritório da Philips, e uma pessoa falou que um artista estava lá insistindo que queria gravar. O outro perguntou: "Quando ele abre a boca sai som?" "Claro." "Então grava." Para ver como já estava.
Hoje, se faz sucesso, faz o segundo trabalho. Se não, já encosta. Não era o nosso caso. Existiam os cantores chamados prateleira, cantores de grande nome que não vendiam disco, mas viajavam, eram respeitadíssimos. Hoje estão cantando até lá no céu.
Folha - Não é contraditório que mesmo as gravadoras sendo menos exigentes artistas como você não tenham chance de gravar?
Marlene -
Realmente, não fui procurada por nenhuma gravadora grande. Mas também não me interessei em procurar. Me dou muito com (o produtor) João Araújo, falei a ele que tinha vontade de gravar. Ele sugeriu que eu procurasse Roberto Menescal. Era muito fácil fazer isso, mas você sabe que eu fiquei sem graça? Não telefonei.
Fiz quatro shows agora no Metropolitan, e um produtor que não vou citar o nome disse que queria produzir um disco meu. Deixou o telefone com uma secretária minha, e eu não telefonei. Não sei por que sou assim. Acho que a pessoa tem de vir a mim. Gosto de ser procurada, estimulada.
Sou muito acanhada, só sou mais solta no palco. Fora isso, me encolho, não sou uma criatura que badala. Nunca fui, sempre me escondi. Mas me exponho demais no palco. Gosto de ver multidão quando estou no palco, mas se eu sair de lá e essa multidão vier em cima de mim, eu desmaio. Mas é uma timidez boba, não é que eu seja acanhada. Sou até assanhada.
Folha - Se por sua conta você não vai atrás, como surgiu o novo CD?
Marlene -
Fui chamada para tomar parte de um disco de Noel nessa gravadora pequenininha, a Leblon. O estúdio é tão miudinho, e eu acostumada com aquelas gravadoras enormes... Aí me deu uma vontade louca de fazer um trabalho aqui. Foi assim, eles disseram que estavam às ordens. Falei com meus músicos, eles não cobraram absolutamente nada. Reuni 14 músicas das que mais fizeram sucesso em meus shows nesses 20 anos.
Folha - A Marlene deste CD é a mesma do início ou mudou?
Marlene -
Lógico que agora estou amadurecida. A gente sabe mais as coisas, estuda mais. Antigamente, era uma coisa mais criança. Mas sempre com noção -a coisa do protesto social sempre esteve muito ligada a mim, desde "Sapato de Pobre", "Lata d'Água", "Papai Noel" ("Patinete no Morro"). Continuo com isso. Escolho repertório pelo texto, sou atriz também. Sendo forte o texto, imediatamente quero decorar e interpretar.
Folha - Suas primeiras músicas tinham um componente humorístico que não aparece mais em "Estrela da Vida", que é mais dramático. Isso é uma mudança?
Marlene -
Essa dramaticidade foi descoberta pela Edith Piaf, quando, em 60, ela me levou para uma temporada em Paris. Ela disse que eu tinha uma veia dramática fortíssima. Há um momento da vida em que a gente está para rir. Em outro, está para chorar.
Folha - Luiz Gonzaga foi importante no início de sua carreira, não?
Marlene -
Sim, ele e Humberto Teixeira. Mas também Luís Antônio, Monsueto Menezes. Zé Keti e João do Vale foram lançados por mim, dei a primeira oportunidade.Tínhamos oportunidade de encontrar diariamente compositores que nos procuravam na Rádio Nacional. Depois houve aquele negócio triste, acabou a Rádio Nacional, o rádio em si virou um toca-discos. Não temos hoje um local de encontro. A TV não dá, não há tempo nem espaço. Hoje os produtores é que escolhem repertório, não é o artista.
Nos anos 60 e 70, você foi uma das cantoras que fizeram shows sob orientação do produtor Hermínio Bello de Carvalho e do diretor teatral Fauzi Arap. Por que terminaram essas associações?
Marlene -
Fauzi Arap é o meu amado, mas mora em São Paulo. É muito difícil, a vida tornou-se muito cara. Para contratar um Fauzi Arap eu teria que ter verba. Eu gostaria de voltar a ser dirigida por ele, sem dúvida nenhuma. O Hermínio está muito desligado da música.
Em 69, com Hermínio, comecei a cantar os compositores que estavam aparecendo na época, Chico, Caetano, Gil, Vandré, Gonzaguinha. Tudo foi cantado por mim.
Folha - Faria isso com as novas gerações?
Marlene -
Gravei Lulu Santos no disco. Se a música for boa, não existe preconceito. Eu canto. Mas agora estou muito impregnada de pagode, axé music, meu Deus. Não tenho vontade de gravar.
Folha - Seu show pode chegar a São Paulo?
Marlene -
Espero conseguir recursos para fazer um show de lançamento de "Estrela da Vida". Gostaria de fazer uma turnê pelo Sesc, que dizem que é fantástico. Não conheço ninguém, não saberia nem como procurar. Mas se tiver alguém interessado, com prazer, estou aberta.
Folha - Emilinha ouviu seu disco?
Marlene -
(Silêncio.) Acho que não. (Hesita.) Se ouviu, não tocou no assunto. Isso não existe. O trabalho dela é um, o meu é outro. Cada uma está lutando do seu lado.
Folha - Como você, ela está há muito sem gravar. Seu disco não reacende a velha rivalidade?
Marlene -
Não reacende, porque parece que ela não está querendo gravar agora. Ela pretende gravar, sim, daqui a pouco. Não existe rivalidade, já passou isso. Acabou a criancice, os tempos mudaram.
Folha - Mas a rivalidade alimentou as carreiras de vocês também...
Marlene -
Não sei se alimentou. Acho que prejudicou um pouco. Aconteceram coisas boas e desagradáveis, mais desagradáveis do que boas. Acho que não foi muito bom, nem para ela nem para mim.
Folha - Você ainda tem sonhos musicais?
Marlene -
Não é um sonho, é uma realidade. Eu gostaria de estar cantando todos os dias, como no início de minha carreira. Eu gosto muito de cantar. De verdade.
Folha - Você vai demorar mais 20 anos para gravar outro disco?
Marlene -
(Rindo) Não, não. Tomara que seja o primeiro de uma série. Não vai ser tão fácil, mas nós vamos conseguir, se Deus quiser.


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