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Lembrança de um encontro imaginário entre Becker e Beckett
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
O Brasil se prepara, justamente, para homenagear uma
das maiores atrizes de toda a
sua história, Cacilda Becker.
Vendo uma entrevista de seu
filho na TV, tentando recolher
do meu próprio baú de memórias alguns fragmentos da carreira de Cacilda, lembrei-me
que ela interpretou um papel
masculino na peça de Samuel
Beckett ``Esperando Godot''.
Naquele momento, concluía
a leitura de mais uma biografia de Beckett (``Damned to Fame'', de James Knowlson). As
páginas finais registram, precisamente, o confronto de Beckett com o grupo holandês De
Haarlemse Toneelschuur, que
decidiu representar Godot só
com mulheres.
``Mulheres não têm próstata'', afirmava Beckett tão indignado que foi à Justiça e
acabou perdendo a causa. Vladimir, um dos dois mendigos
da peça, a todo momento tem
de deixar o palco para urinar,
por causa do crescimento de
sua próstata.
De um modo geral, Beckett
era muito rigoroso ao autorizar a encenação de suas peças.
Quase todos os textos eram
produto de sua vivência pessoal e continham elementos
transfigurados da autobiografia. A próstata de Vladimir,
por exemplo.
Na batalha judicial, que felizmente não chegou a travar
com a atriz brasileira, Beckett
argumentou também que via
os papéis em sua obra com sua
diferença sexual e também
com as diferenças vocais.
``Substituir homens por mulheres é o mesmo que substituir
violinos por trombones e isto
viola a integridade da peça'',
argumentou o advogado do escritor, certamente orientado
pelas próprias razões de Beckett.
Beckett, inspirado em Joyce,
manteve durante sua vida
uma incrível integridade artística. Jamais aceitou censura,
recusava cortes, alterações
-tudo que cheirasse a concessão aos imperativos comerciais
ou conservadores.
No entanto, esta causa, ele
perdeu porque o juiz holandês
considerou argumentos que
serviriam também para absolver nossa Cacilda Becker. O
primeiro ponto: a peça, com
mulher no elenco, obedece ou
não ao texto original? Obedece
ou não às marcações de palco?
Finalmente, o juiz deu o xeque-mate: uma vez que o texto
é sobre a condição humana em
geral, pode ser interpretado,
indistintamente por homens e
mulheres.
O mesmo argumento decisivo
foi usado por Robert Brustein e
Actors Equity para defender
uma encenação com elenco totalmente negro, ou combinado
com atores brancos.
Se Beckett encontrasse Becker, tenho certeza de que reconheceria seu talento. Resta saber se aceitaria bem a versão
brasileira. Quando passava férias na Ilha da Madeira interessou-se pelo idioma, leu poemas de Fernando Pessoa, mas
concluiu que para ele era uma
língua impronunciável.
Talvez por isso iria interferir
menos no texto traduzido.
Suas peças eram escritas e representadas como uma composição musical. Qualquer variação no tempo, fraseado qualidade tonal produz performances diferentes -cacofonia no
limite do erro.
Beckett passou a dirigir suas
peças. Ligou-se a Billie Whitelaw, talvez a única atriz que o
satisfez totalmente, interpretando diferentes textos. Mas
ela sofria. Ensaiavam juntos,
incessantemente, cada pronúncia, cada silêncio, cada
passo. Dias e dias, noites e noites.
Em certos textos, todo esse
trabalho era para representar
na penumbra, sentada numa
cadeira de balanço. Numa das
peças, aparecia apenas a boca
da atriz e, no escuro, a cabeça
era imobilizada para que os
lábios confrontassem as luzes
na exata posição.
Disso tudo, Cacilda se livrou.
Ou talvez tivesse gostado,
quem sabe. Grandes estrelas
como Madeleine Renaud tiveram contatos rápidos com a
obra de Beckett. Não conseguiram se adaptar, ou foram, discretamente, alijadas por ele.
Mesmo Delphine Seyrig, que o
ajudou em certo momento da
vida, sentia-se intimidada com
seu rigor e erudição.
Cacilda Becker, se não me falha a memória, conseguiu fazer de um texto escrito para
homem uma grande performance em ``Esperando Godot''.
E interpretar Beckett é difícil
não só por causa do rigor musical do texto. São sempre personagens que mantêm a lucidez e a sensibilidade num corpo em decadência, quase em
decomposição. Concordo com
o juiz holandês, ao se deter na
condição humana.
A próstata é um artefato perfeitamente substituível, quando se trata de vivenciar esta
realidade comum de dois.
On entre, on crie
Et c'est la vie
On crie, on sort
Et c'est la mort
Talvez esteja tudo sintetizado aí, no texto mais curto que
preparou para o teatro: A gente entra e grita/ E é a vida/ A
gente grita e parte/ E é a morte.
Tradução, evidentemente, não
autorizada.
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