São Paulo, segunda, 17 de março de 1997.

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Lembrança de um encontro imaginário entre Becker e Beckett

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

O Brasil se prepara, justamente, para homenagear uma das maiores atrizes de toda a sua história, Cacilda Becker. Vendo uma entrevista de seu filho na TV, tentando recolher do meu próprio baú de memórias alguns fragmentos da carreira de Cacilda, lembrei-me que ela interpretou um papel masculino na peça de Samuel Beckett ``Esperando Godot''.
Naquele momento, concluía a leitura de mais uma biografia de Beckett (``Damned to Fame'', de James Knowlson). As páginas finais registram, precisamente, o confronto de Beckett com o grupo holandês De Haarlemse Toneelschuur, que decidiu representar Godot só com mulheres.
``Mulheres não têm próstata'', afirmava Beckett tão indignado que foi à Justiça e acabou perdendo a causa. Vladimir, um dos dois mendigos da peça, a todo momento tem de deixar o palco para urinar, por causa do crescimento de sua próstata.
De um modo geral, Beckett era muito rigoroso ao autorizar a encenação de suas peças. Quase todos os textos eram produto de sua vivência pessoal e continham elementos transfigurados da autobiografia. A próstata de Vladimir, por exemplo.
Na batalha judicial, que felizmente não chegou a travar com a atriz brasileira, Beckett argumentou também que via os papéis em sua obra com sua diferença sexual e também com as diferenças vocais.
``Substituir homens por mulheres é o mesmo que substituir violinos por trombones e isto viola a integridade da peça'', argumentou o advogado do escritor, certamente orientado pelas próprias razões de Beckett.
Beckett, inspirado em Joyce, manteve durante sua vida uma incrível integridade artística. Jamais aceitou censura, recusava cortes, alterações -tudo que cheirasse a concessão aos imperativos comerciais ou conservadores.
No entanto, esta causa, ele perdeu porque o juiz holandês considerou argumentos que serviriam também para absolver nossa Cacilda Becker. O primeiro ponto: a peça, com mulher no elenco, obedece ou não ao texto original? Obedece ou não às marcações de palco?
Finalmente, o juiz deu o xeque-mate: uma vez que o texto é sobre a condição humana em geral, pode ser interpretado, indistintamente por homens e mulheres.
O mesmo argumento decisivo foi usado por Robert Brustein e Actors Equity para defender uma encenação com elenco totalmente negro, ou combinado com atores brancos.
Se Beckett encontrasse Becker, tenho certeza de que reconheceria seu talento. Resta saber se aceitaria bem a versão brasileira. Quando passava férias na Ilha da Madeira interessou-se pelo idioma, leu poemas de Fernando Pessoa, mas concluiu que para ele era uma língua impronunciável.
Talvez por isso iria interferir menos no texto traduzido. Suas peças eram escritas e representadas como uma composição musical. Qualquer variação no tempo, fraseado qualidade tonal produz performances diferentes -cacofonia no limite do erro.
Beckett passou a dirigir suas peças. Ligou-se a Billie Whitelaw, talvez a única atriz que o satisfez totalmente, interpretando diferentes textos. Mas ela sofria. Ensaiavam juntos, incessantemente, cada pronúncia, cada silêncio, cada passo. Dias e dias, noites e noites.
Em certos textos, todo esse trabalho era para representar na penumbra, sentada numa cadeira de balanço. Numa das peças, aparecia apenas a boca da atriz e, no escuro, a cabeça era imobilizada para que os lábios confrontassem as luzes na exata posição.
Disso tudo, Cacilda se livrou. Ou talvez tivesse gostado, quem sabe. Grandes estrelas como Madeleine Renaud tiveram contatos rápidos com a obra de Beckett. Não conseguiram se adaptar, ou foram, discretamente, alijadas por ele. Mesmo Delphine Seyrig, que o ajudou em certo momento da vida, sentia-se intimidada com seu rigor e erudição.
Cacilda Becker, se não me falha a memória, conseguiu fazer de um texto escrito para homem uma grande performance em ``Esperando Godot''. E interpretar Beckett é difícil não só por causa do rigor musical do texto. São sempre personagens que mantêm a lucidez e a sensibilidade num corpo em decadência, quase em decomposição. Concordo com o juiz holandês, ao se deter na condição humana.
A próstata é um artefato perfeitamente substituível, quando se trata de vivenciar esta realidade comum de dois.
On entre, on crie
Et c'est la vie
On crie, on sort
Et c'est la mort
Talvez esteja tudo sintetizado aí, no texto mais curto que preparou para o teatro: A gente entra e grita/ E é a vida/ A gente grita e parte/ E é a morte. Tradução, evidentemente, não autorizada.

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