São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Viagem sem volta no itinerário do medo

A cara do médico não é boa, aliás, do outro lado da mesa, a cara dos médicos é enigmática. O enigma faz parte da consulta, da profissão e dos honorários. O jeito é o paciente ficar paciente e esperar pelos exames.
Mas até os exames há que decifrar os hieróglifos que ele rabiscou na receita que os solicitava. Há nomes com raízes gregas e desinências latinas. O que será líquido céfalo-raquidiano? "Fundus oculi" parece latim macarrônico. Relê as instruções, fica sabendo que um pedaço de seu olho será retirado e irá para as provetas, os reagentes, o diabo.
Por falar em diabo, passa por uma igreja e tem vontade de rezar, acender velas, prometer alguma coisa que possa ser cumprida sem muito sacrifício, afastar desgraças e implorar graças. Mas implorar o quê? A quem?
Na situação em que está, não adianta pedir mais nada. É tarde, é muito tarde, como naquele sermão de Mont'Alverne que decorava no ginásio, "é tarde, é muito tarde, não poderei terminar o quadro que acabei de bosquejar impelido por uma força..." -não se lembrava do resto. Teve raiva de ter a memória atravancada de coisas inúteis e findas.
Mesmo assim entra na igreja. Está escura como uma gruta abandonada, um pouco úmida, cheirando a terra, a velas apagadas, a sombras de fiéis mortos que ali deixaram, além da sombra, o silêncio de preces não escutadas. Lá na frente, num dos primeiros bancos, a velha ajoelhada é uma silhueta atarracada, a fita roxa cobrindo os ombros e formando uma corcunda colorida.
"Vejamos bem isso tudo" -pensa. Tudo isso faz parte do mundo que talvez lhe seja roubado. A qualquer momento somos arrancados dele. Mas isso não dói tanto. Dói a lentidão da incerteza, a lembrança da cara do médico; se tudo correr bem, podemos salvar a vista. Mas há possibilidade de contaminação mais funda, então você perderá a vista, sejamos otimistas, tudo não passará de um simples curativo, e você ficará bom.
Ali, na igreja, a frase do médico é uma oração às avessas: você ficará bom. O que significa ficar bom? Olhar as coisas, o mar, as crianças, o sorriso de suas filhas, o céu, o vento, a noite. Ser como antes é não ter olhos e olhar, mecanicamente, como se olhar fosse um direito que ninguém lhe pudesse roubar.
Você ficará bom, mas pode haver raízes gregas e desinências latinas em sua vista, e aí aquele globo castanho saltará fora. E para onde irá o olho que lhe será arrancado? Que paisagens estranhas, que espectros serão olhados pelo olho paralisado, igual ao daquele monstro marinho de um filme de Fellini?
Isso não importa. Está numa igreja onde se adora um Deus em que ele não acredita. O território é neutro. Entre o médico e o laboratório, entre o enigma e a certeza, faz bem estar ali, na solidão úmida de uma gruta cheirando a terra, a velas apagadas, a velha rezando lá longe. Podia chegar perto dela e pedir baixinho: "Reze por mim!". Ela rezaria? Isso adiantaria?
Novamente na rua, distrai-se em procurar o laboratório. Examina os prédios, toma elevadores errados, desce em andares equivocados, finalmente vê a portinhola de vidro com o nome gravado em vermelho: "Análises clínicas". É ali. A enfermeira ignora que em sua vida há um enigma, é neutra como a igreja, inarredável como a velha. Apanha a receita, chama o médico, começa a preparar uns ferros cromados que parecem ferramentas de tortura.
Ele se distrai, agora, em imaginar uma pitanga vermelha em cima de um cubo de gelo. Só após a anestesia passar, descobre que o cubo de gelo existe mesmo. E a pitanga é um pedacinho de sangue que saiu de seu olho indefeso. Naquela pitanga está a solução do enigma. "Talvez se salve a vista, mas a vida não corre perigo."
Bolas, a vida inteira corre perigo, com ou sem pitangas a vida está sempre ameaçada. E a ameaça é tanta, e tão constante, que já se habituou a ela. Nem sofre mais em se sentir ameaçado.
Sofre, porém. Sabe que o mundo em breve acabará para seus olhos. E as mulheres, as crianças, os livros que gostaria de ler, os livros que gostaria de escrever, o mar de inverno e as folhas cor de ouro velho no outono da praça Paris. Tudo isso será uma sombra úmida numa gruta cheia de sombras.
Fixa um ônibus esverdeado que vai fazendo a curva no final da avenida. Quer guardar para sempre o que é um ônibus. Bebe com sede o ônibus, lagarta esverdeada com sua gente submissa -tudo isso é o mundo que lhe será roubado e do qual talvez nem sinta falta.
E segue avante, abrindo bem os olhos, devorando os objetos, as pessoas, a carrocinha que vende sorvete, as luzes que começam a acender. Num futuro que pode começar amanhã, terá de povoar a escuridão que o espera com os fantasmas que agora o rodeiam. Pedaços de memória, matéria de saudade.


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