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CARLOS HEITOR CONY
Viagem sem volta no itinerário do medo
A cara do médico não é boa,
aliás, do outro lado da mesa, a cara dos médicos é enigmática. O
enigma faz parte da consulta, da
profissão e dos honorários. O jeito
é o paciente ficar paciente e esperar pelos exames.
Mas até os exames há que decifrar os hieróglifos que ele rabiscou
na receita que os solicitava. Há
nomes com raízes gregas e desinências latinas. O que será líquido céfalo-raquidiano? "Fundus
oculi" parece latim macarrônico.
Relê as instruções, fica sabendo
que um pedaço de seu olho será
retirado e irá para as provetas, os
reagentes, o diabo.
Por falar em diabo, passa por
uma igreja e tem vontade de rezar, acender velas, prometer alguma coisa que possa ser cumprida
sem muito sacrifício, afastar desgraças e implorar graças. Mas implorar o quê? A quem?
Na situação em que está, não
adianta pedir mais nada. É tarde,
é muito tarde, como naquele sermão de Mont'Alverne que decorava no ginásio, "é tarde, é muito
tarde, não poderei terminar o
quadro que acabei de bosquejar
impelido por uma força..." -não
se lembrava do resto. Teve raiva
de ter a memória atravancada de
coisas inúteis e findas.
Mesmo assim entra na igreja.
Está escura como uma gruta
abandonada, um pouco úmida,
cheirando a terra, a velas apagadas, a sombras de fiéis mortos que
ali deixaram, além da sombra, o
silêncio de preces não escutadas.
Lá na frente, num dos primeiros
bancos, a velha ajoelhada é uma
silhueta atarracada, a fita roxa
cobrindo os ombros e formando
uma corcunda colorida.
"Vejamos bem isso tudo"
-pensa. Tudo isso faz parte do
mundo que talvez lhe seja roubado. A qualquer momento somos
arrancados dele. Mas isso não dói
tanto. Dói a lentidão da incerteza,
a lembrança da cara do médico;
se tudo correr bem, podemos salvar a vista. Mas há possibilidade
de contaminação mais funda, então você perderá a vista, sejamos
otimistas, tudo não passará de
um simples curativo, e você ficará
bom.
Ali, na igreja, a frase do médico
é uma oração às avessas: você ficará bom. O que significa ficar
bom? Olhar as coisas, o mar, as
crianças, o sorriso de suas filhas, o
céu, o vento, a noite. Ser como antes é não ter olhos e olhar, mecanicamente, como se olhar fosse um
direito que ninguém lhe pudesse
roubar.
Você ficará bom, mas pode haver raízes gregas e desinências latinas em sua vista, e aí aquele globo castanho saltará fora. E para
onde irá o olho que lhe será arrancado? Que paisagens estranhas, que espectros serão olhados
pelo olho paralisado, igual ao daquele monstro marinho de um filme de Fellini?
Isso não importa. Está numa
igreja onde se adora um Deus em
que ele não acredita. O território é
neutro. Entre o médico e o laboratório, entre o enigma e a certeza,
faz bem estar ali, na solidão úmida de uma gruta cheirando a terra, a velas apagadas, a velha rezando lá longe. Podia chegar perto dela e pedir baixinho: "Reze
por mim!". Ela rezaria? Isso
adiantaria?
Novamente na rua, distrai-se
em procurar o laboratório. Examina os prédios, toma elevadores
errados, desce em andares equivocados, finalmente vê a portinhola
de vidro com o nome gravado em
vermelho: "Análises clínicas". É
ali. A enfermeira ignora que em
sua vida há um enigma, é neutra
como a igreja, inarredável como a
velha. Apanha a receita, chama o
médico, começa a preparar uns
ferros cromados que parecem ferramentas de tortura.
Ele se distrai, agora, em imaginar uma pitanga vermelha em cima de um cubo de gelo. Só após a
anestesia passar, descobre que o
cubo de gelo existe mesmo. E a pitanga é um pedacinho de sangue
que saiu de seu olho indefeso. Naquela pitanga está a solução do
enigma. "Talvez se salve a vista,
mas a vida não corre perigo."
Bolas, a vida inteira corre perigo, com ou sem pitangas a vida está sempre ameaçada. E a ameaça
é tanta, e tão constante, que já se
habituou a ela. Nem sofre mais
em se sentir ameaçado.
Sofre, porém. Sabe que o mundo
em breve acabará para seus olhos.
E as mulheres, as crianças, os livros que gostaria de ler, os livros
que gostaria de escrever, o mar de
inverno e as folhas cor de ouro velho no outono da praça Paris. Tudo isso será uma sombra úmida
numa gruta cheia de sombras.
Fixa um ônibus esverdeado que
vai fazendo a curva no final da
avenida. Quer guardar para sempre o que é um ônibus. Bebe com
sede o ônibus, lagarta esverdeada
com sua gente submissa -tudo
isso é o mundo que lhe será roubado e do qual talvez nem sinta
falta.
E segue avante, abrindo bem os
olhos, devorando os objetos, as
pessoas, a carrocinha que vende
sorvete, as luzes que começam a
acender. Num futuro que pode começar amanhã, terá de povoar a
escuridão que o espera com os
fantasmas que agora o rodeiam.
Pedaços de memória, matéria de
saudade.
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