UOL


São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA ERUDITA/"O REI DAVI"

Salmos, penitências e misericórdia tocados pela Osesp

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Sempre é bom pedir misericórdia no início do ano. Abate o saldo da culpa e prepara para o que vem. Tanto melhor ao som dos trompetes e trombones, pontuando o coro no "Salmo de Penitência", entre outros salmos e penitências de "O Rei Davi", de Honegger (1892-1955), na abertura da temporada da Osesp, na quinta-feira passada.
Antes da fé, a patriotada: "Hino Nacional", todo mundo em pé, maestro John Neschling cantando com a platéia. Aplausos sem maior entusiasmo, embora a Osesp toque Francisco Manuel da Silva (1795-1865) muito bem.
Pouco e, além de pouco, mal conhecido, o suíço Arthur Honegger é bem mais do que o compositor de "Pacific 231", minipoema sinfônico inspirado nos sons de um trem. Membro não muito convicto do Grupo dos Seis (ao lado de Poulenc e Milhaud e dos outros que a gente nunca lembra), escreveu óperas, sinfonias, música de câmara e algumas trilhas de filmes antológicas, como a de "Napoleão".
"O Rei Davi" é de 1921. Foi composto por encomenda, em dois meses, para a estranha combinação de 17 instrumentistas e coro de cem vozes, as forças disponíveis no teatro do poeta suíço René Morax, autor do libreto.
Em 1923, Honegger refez a orquestração, para desconstranger a música. O resultado serviria de emblema para sua obra: combina modernismo stravinskiano e polifonia luterana, realismo cinematográfico e intensidade de idéia, traduzidos numa linguagem direta, de artesanato honesto, como ele mesmo gostava de dizer.

Profetas de smoking
O maior papel não é cantado: cabe a um narrador ir descrevendo a história, ilustrada pela orquestra e comentada pelos cantores. De uma eloquência firme, sem timidez e sem exagero, o ator argentino (radicado na França) Marcial di Fonzo Bo fez desse narrador uma figura improvavelmente bíblica. Era a Voz, que clama no deserto das almas, de "smoking" que seja.
Já Maria Fernanda, encarnando a pitonisa, numa única grande cena, teria se beneficiado muito das graças de um bom microfone. Foi sumindo, pouco a pouco, no fogo da orquestra.
Ótima soprano Christine Buffle, boa contralto Brigitte Balleys, tenor Ian Caley seguro. Nenhuma dessas é uma voz de sonho; mas a música, afinal, também não. Mesmo os melismas da soprano (muitas notas numa sílaba só) soam mais como imitação de paixão oriental do que a coisa em si. Essa ingenuidade sofisticada ainda parece virtude: eram outros tempos, era outra Europa, era antes do que veio depois.
Destaques: trompetes, trombones, trompas. A partitura foi feita para eles; e as fanfarras da Osesp são gloriosas. Não esquecer a tuba (Marcos dos Anjos Jr.), carregando a "Marcha dos Filisteus". Harpa e celesta (com ataques delicados e perfeitos na "Morte de Davi"), contrabaixos em aleluias cromáticos no final da segunda parte: as estrelas nem sempre estão onde mais se espera. Coro na habitual excelência.
Para não cometer injustiça, cabe lembrar a linda frase dos violinos, no final do salmo "Fui Concebido no Pecado". E a viola solo (Horácio Shaeffer) no "Canto da Servidora".
Pecado, aliás, é a Osesp não programar um Festival de Verão. Três meses sem concerto é muito tempo. Demais para quem fica por aqui e depende de música para tolerar o que não é música neste reino que não é de Davi.


Avaliação:     


Texto Anterior: Análise: Dupla fez império vendendo sedução
Próximo Texto: Panorâmica: Documentário: Festival É Tudo Verdade anuncia selecionados
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.