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MÚSICA ERUDITA/"O REI DAVI"
Salmos, penitências e misericórdia tocados pela Osesp
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Sempre é bom pedir misericórdia no início do ano. Abate
o saldo da culpa e prepara para o
que vem. Tanto melhor ao som
dos trompetes e trombones, pontuando o coro no "Salmo de Penitência", entre outros salmos e penitências de "O Rei Davi", de Honegger (1892-1955), na abertura
da temporada da Osesp, na quinta-feira passada.
Antes da fé, a patriotada: "Hino
Nacional", todo mundo em pé,
maestro John Neschling cantando
com a platéia. Aplausos sem
maior entusiasmo, embora a
Osesp toque Francisco Manuel da
Silva (1795-1865) muito bem.
Pouco e, além de pouco, mal conhecido, o suíço Arthur Honegger é bem mais do que o compositor de "Pacific 231", minipoema
sinfônico inspirado nos sons de
um trem. Membro não muito
convicto do Grupo dos Seis (ao lado de Poulenc e Milhaud e dos
outros que a gente nunca lembra),
escreveu óperas, sinfonias, música de câmara e algumas trilhas de
filmes antológicas, como a de
"Napoleão".
"O Rei Davi" é de 1921. Foi composto por encomenda, em dois
meses, para a estranha combinação de 17 instrumentistas e coro
de cem vozes, as forças disponíveis no teatro do poeta suíço René
Morax, autor do libreto.
Em 1923, Honegger refez a orquestração, para desconstranger
a música. O resultado serviria de
emblema para sua obra: combina
modernismo stravinskiano e polifonia luterana, realismo cinematográfico e intensidade de idéia,
traduzidos numa linguagem direta, de artesanato honesto, como
ele mesmo gostava de dizer.
Profetas de smoking
O maior papel não é cantado:
cabe a um narrador ir descrevendo a história, ilustrada pela orquestra e comentada pelos cantores. De uma eloquência firme,
sem timidez e sem exagero, o ator
argentino (radicado na França)
Marcial di Fonzo Bo fez desse narrador uma figura improvavelmente bíblica. Era a Voz, que clama no deserto das almas, de
"smoking" que seja.
Já Maria Fernanda, encarnando
a pitonisa, numa única grande cena, teria se beneficiado muito das
graças de um bom microfone. Foi
sumindo, pouco a pouco, no fogo
da orquestra.
Ótima soprano Christine Buffle,
boa contralto Brigitte Balleys, tenor Ian Caley seguro. Nenhuma
dessas é uma voz de sonho; mas a
música, afinal, também não. Mesmo os melismas da soprano (muitas notas numa sílaba só) soam
mais como imitação de paixão
oriental do que a coisa em si. Essa
ingenuidade sofisticada ainda parece virtude: eram outros tempos,
era outra Europa, era antes do que
veio depois.
Destaques: trompetes, trombones, trompas. A partitura foi feita
para eles; e as fanfarras da Osesp
são gloriosas. Não esquecer a tuba
(Marcos dos Anjos Jr.), carregando a "Marcha dos Filisteus". Harpa e celesta (com ataques delicados e perfeitos na "Morte de Davi"), contrabaixos em aleluias
cromáticos no final da segunda
parte: as estrelas nem sempre estão onde mais se espera. Coro na
habitual excelência.
Para não cometer injustiça, cabe
lembrar a linda frase dos violinos,
no final do salmo "Fui Concebido
no Pecado". E a viola solo (Horácio Shaeffer) no "Canto da Servidora".
Pecado, aliás, é a Osesp não programar um Festival de Verão.
Três meses sem concerto é muito
tempo. Demais para quem fica
por aqui e depende de música para tolerar o que não é música neste reino que não é de Davi.
Avaliação:
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