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Na zona do "mangue" morava a miséria do desejo
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Aos 15, 16 anos eu ainda era
virgem. Bené, o pipoqueiro e
Alfredinho, o aleijado, como já
contei, eram meus professores
de sexo. O leitor perguntará:
por que você está falando dessas coisas remotas e íntimas
dos anos 50? Não sei, não sei...,
talvez porque a política continua morna no Brasil.
Pois bem, quando fiz 16 anos,
eu ouvi a Ciomara (tinha olhos
cor de chumbo) cantando na
rua: "Vivo esperando e procurando um trevo no meu jardim" ... e fiquei apaixonado,
sendo que ela me deixou segurar em sua mão.
O fato foi considerado por
Bené e Alfredinho como um
deslize romântico, prejudicando suas aulas de sexo ("amor é
coisa de viado"). Bené fez um
muxoxo e Alfredinho limitou-se a perguntar se eu "já lhe
segurara nos peitinhos", sendo
que meu amigo Cabeção ficou
pálido, o que me fez desconfiar
de que ele também amava a
Ciomara.
Não me lembro mais do rosto
de meu amor, mas vejo ainda
as flores sangrentas dos "flamboyants" que caiam no chão à
sua volta, naquele antigo verão.
Bené mexia a pipoca calado,
fingindo desatenção, quando
soltou de súbito: "Vocês já foram ao Mangue?" "É mesmo!
O Mangue, o Mangue!", ecoou
o Alfredinho animado, balançando nas muletinhas.
Senti na pergunta de Bené
uma sabotagem deliberada a
meu nascente coração de pierrot. O Mangue. A palavra me
atraiu como um visgo, uma
gosma que evocava lama e perigo, que fascinava minha fome de verdade.
E, apesar de apaixonado por
Ciomara, o que me fazia ficar
horas olhando o anúncio luminoso da "Salutaris" (quem se
lembra?), a garrafa de água
mineral de néon, derramando
líquido dourado no mar, senti
que eu tinha absolutamente
que ir ao Mangue.
Fui sozinho, pálido de minha
coragem. Minha chegada na
"zona do baixo meretrício"
-como chamavam- foi como um soco na cara.
No Mangue havia uns tapumes que a prefeitura botava na
frente das esquinas, para as famílias não verem as nesgas da
prostituição pobre. Os tapumes
eram a fronteira para um outro país, diferente do que eu
conhecia.
O Mangue era um país ao
contrário. Uma espécie de negativo de minha realidade, de
Ciomara, dos "flamboyants",
do mar dourado; era uma anti-matéria, a mesma cidade do
Rio, só que funcionando ao
avesso.
O Mangue eram quarteirões
de casas toscas, porta, janela e
varandinha, onde se exibiam
as mercadorias, as mulheres
diante das quais os homens se
postavam como em filas de
açougue, em filas de emprego,
em filas de alistamento.
Ao primeiro olho, tudo parecia um grande comício. Havia
ali duas ou três mil pessoas (ou
seria meu olhar espantado?).
Muitos anos depois, eu vi as
geniais gravuras de Lasar Segall sobre a "zona" do Rio. Era
assim mesmo, eu não estava
errado.
O que eu vi primeiro foram
as línguas e os dedos. As mulheres quase todas ficavam repetindo como bonecas mecânicas o mesmo gesto sincronizado, em que as línguas se batiam entre os lábios, como cobras, e os dedos indicador e polegar, unidos em "o", balançavam como num gesto trêmulo
de "Parkinson", como se todas
tivessem um tremor igual, uma
"dança de São Guido" pegando na multidão de fêmeas.
Esses gestos eram um slogan,
um "marketing" de suas habilidades: "pela boca e por trás".
Eram mulheres apinhadas nas
escadinhas e portais de todas
as cores. Havia negras, brancas, louras pintadas, velhas,
muito velhas, mocinhas fracas
e, mais espantoso, quase todas
nuas numa época pudica, só de
calcinha e sutiã e em posições
contrárias a qualquer elegância; eram pernas abertas, seios
para fora, cabelos espichados,
bocas sem dentes, batons carmesins borrados, banhas, muitas banhas, muitas mulheres
gordas, sujas, gritos e gargalhadas num descaramento
proposital.
Ali, todos sabiam, era a cloaca barata, a vala comum. Ali
só estavam os sem-esperança,
os sem-dinheiro, os que viviam
na miséria do sexo, o proletariado do desejo.
Aquele mangue entrava em
mim como uma enxurrada de
vida, como uma sujeira salvadora contra a pureza a que me
obrigavam. Todos que enxameavam ali nas ruelas faziam
questão de escancarar a bruta
feiúra de tudo, todos tinham
uma fome de escracho para esmagar qualquer ilusão.
Tomei coragem e entrei numa casinha em que os quartos
eram divididos em pequenos
compartimentos como baias de
cavalo, em que uma caminha
suja de solteiro ficava debaixo
de um São Jorge com luzinha.
Havia baldes, esteiras, cheiro
de urina, mulheres olhando
paradas, ruídos de cópula, despachos para santos, velas acesas e, claro, os eternos viados
da faxina, pobres e feios, cuidando dos sanduíches e panos
de chão. Um deles me expulsou
rindo ("Vamos comer o nenen!!!") e voltei para a multidão dos miseráveis.
Diante das casinhas sujas, os
homens se postavam, baços,
pobres, pardos, velhos, tristes,
avaliando com olho morto as
réstias de beleza ou juventude
que houvesse por ali, enquanto
as mulheres em rebanho conversavam, diziam frases mecânicas tipo "vem cá, boniton!"
(ainda havia velhas polacas
pintadas), todas sem parar fazendo os gestos de dedo e língua como num comício de mudos.
Se os puteiros de classe média
fingiam de casa de família,
aquilo ali semelhava um campo de concentração. Havia um
clima de guerra, de banimento, de gueto, havia gás no ar,
gestos de judeus, estrelas amarelas, febre no ar. Havia ali um
grande escracho com a liberdade; aquela suja liberdade
que todos tinham era uma coisa a ser enxovalhada, morta a
pedradas, esfregada na cara de
fregueses e de putas.
As mulheres estavam se vingando por estarem ali, prisioneiras livres, se vingando nas
poses safadas, se vingando dos
fregueses miseráveis que as
olhavam, se vingando de si
mesmas.
Foi então que aconteceu. De
uma casa, em meio a súbita
gritaria de pânico, um marinheiro mulato surgiu correndo
desabalado e sumiu na esquina do Mangue em um segundo
como um raio.
E na mesma porta, em câmera lenta, uma mulher apareceu, parada quase, completamente nua, muito, muito
branca, usando apenas uma fita vermelha descendo-lhe entre os seios, obliquamente até a
cintura, uma fita perfeita, rubra, como uma faixa de miss.
Sua mão erguida com delicadeza apontava para cima e de
seus dedos pingavam estrelas
vermelhas como as flores do
flamboyant que caiam em volta de Ciomara, lá no país remoto de onde eu tinha vindo.
A mulher, muito branca, de
cal, de gesso, não era uma missa com faixa; a fita vermelha
perfeita era a navalhada que o
amante tinha deixado antes de
sumir na rua e, de seus dedos
erguidos, o sangue caia como
flores de uma árvore alta.
Muitos anos depois, eu vi as
gravuras de Segall, como já
disse, e vi também num museu
aquela mulher do quadro de
Delacroix, simbolizando a liberdade francesa, de seios nus,
a "república" à frente dos cidadãos. E me lembrei sempre
da mulher muito branca com a
fita de sangue no busto.
Voltei para casa e não falei
com ninguém, nem com Bené,
nem com Cabeção.
Ciomara mudou logo depois
para Botafogo e eu não a vi
mais. Naquele dia, no Mangue,
eu descobri o Brasil.
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