São Paulo, terça, 17 de março de 1998

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Na zona do "mangue" morava a miséria do desejo

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Aos 15, 16 anos eu ainda era virgem. Bené, o pipoqueiro e Alfredinho, o aleijado, como já contei, eram meus professores de sexo. O leitor perguntará: por que você está falando dessas coisas remotas e íntimas dos anos 50? Não sei, não sei..., talvez porque a política continua morna no Brasil.
Pois bem, quando fiz 16 anos, eu ouvi a Ciomara (tinha olhos cor de chumbo) cantando na rua: "Vivo esperando e procurando um trevo no meu jardim" ... e fiquei apaixonado, sendo que ela me deixou segurar em sua mão.
O fato foi considerado por Bené e Alfredinho como um deslize romântico, prejudicando suas aulas de sexo ("amor é coisa de viado"). Bené fez um muxoxo e Alfredinho limitou-se a perguntar se eu "já lhe segurara nos peitinhos", sendo que meu amigo Cabeção ficou pálido, o que me fez desconfiar de que ele também amava a Ciomara.
Não me lembro mais do rosto de meu amor, mas vejo ainda as flores sangrentas dos "flamboyants" que caiam no chão à sua volta, naquele antigo verão.
Bené mexia a pipoca calado, fingindo desatenção, quando soltou de súbito: "Vocês já foram ao Mangue?" "É mesmo! O Mangue, o Mangue!", ecoou o Alfredinho animado, balançando nas muletinhas.
Senti na pergunta de Bené uma sabotagem deliberada a meu nascente coração de pierrot. O Mangue. A palavra me atraiu como um visgo, uma gosma que evocava lama e perigo, que fascinava minha fome de verdade.
E, apesar de apaixonado por Ciomara, o que me fazia ficar horas olhando o anúncio luminoso da "Salutaris" (quem se lembra?), a garrafa de água mineral de néon, derramando líquido dourado no mar, senti que eu tinha absolutamente que ir ao Mangue.
Fui sozinho, pálido de minha coragem. Minha chegada na "zona do baixo meretrício" -como chamavam- foi como um soco na cara.
No Mangue havia uns tapumes que a prefeitura botava na frente das esquinas, para as famílias não verem as nesgas da prostituição pobre. Os tapumes eram a fronteira para um outro país, diferente do que eu conhecia.
O Mangue era um país ao contrário. Uma espécie de negativo de minha realidade, de Ciomara, dos "flamboyants", do mar dourado; era uma anti-matéria, a mesma cidade do Rio, só que funcionando ao avesso.
O Mangue eram quarteirões de casas toscas, porta, janela e varandinha, onde se exibiam as mercadorias, as mulheres diante das quais os homens se postavam como em filas de açougue, em filas de emprego, em filas de alistamento.
Ao primeiro olho, tudo parecia um grande comício. Havia ali duas ou três mil pessoas (ou seria meu olhar espantado?). Muitos anos depois, eu vi as geniais gravuras de Lasar Segall sobre a "zona" do Rio. Era assim mesmo, eu não estava errado.
O que eu vi primeiro foram as línguas e os dedos. As mulheres quase todas ficavam repetindo como bonecas mecânicas o mesmo gesto sincronizado, em que as línguas se batiam entre os lábios, como cobras, e os dedos indicador e polegar, unidos em "o", balançavam como num gesto trêmulo de "Parkinson", como se todas tivessem um tremor igual, uma "dança de São Guido" pegando na multidão de fêmeas.
Esses gestos eram um slogan, um "marketing" de suas habilidades: "pela boca e por trás". Eram mulheres apinhadas nas escadinhas e portais de todas as cores. Havia negras, brancas, louras pintadas, velhas, muito velhas, mocinhas fracas e, mais espantoso, quase todas nuas numa época pudica, só de calcinha e sutiã e em posições contrárias a qualquer elegância; eram pernas abertas, seios para fora, cabelos espichados, bocas sem dentes, batons carmesins borrados, banhas, muitas banhas, muitas mulheres gordas, sujas, gritos e gargalhadas num descaramento proposital.
Ali, todos sabiam, era a cloaca barata, a vala comum. Ali só estavam os sem-esperança, os sem-dinheiro, os que viviam na miséria do sexo, o proletariado do desejo.
Aquele mangue entrava em mim como uma enxurrada de vida, como uma sujeira salvadora contra a pureza a que me obrigavam. Todos que enxameavam ali nas ruelas faziam questão de escancarar a bruta feiúra de tudo, todos tinham uma fome de escracho para esmagar qualquer ilusão.
Tomei coragem e entrei numa casinha em que os quartos eram divididos em pequenos compartimentos como baias de cavalo, em que uma caminha suja de solteiro ficava debaixo de um São Jorge com luzinha.
Havia baldes, esteiras, cheiro de urina, mulheres olhando paradas, ruídos de cópula, despachos para santos, velas acesas e, claro, os eternos viados da faxina, pobres e feios, cuidando dos sanduíches e panos de chão. Um deles me expulsou rindo ("Vamos comer o nenen!!!") e voltei para a multidão dos miseráveis.
Diante das casinhas sujas, os homens se postavam, baços, pobres, pardos, velhos, tristes, avaliando com olho morto as réstias de beleza ou juventude que houvesse por ali, enquanto as mulheres em rebanho conversavam, diziam frases mecânicas tipo "vem cá, boniton!" (ainda havia velhas polacas pintadas), todas sem parar fazendo os gestos de dedo e língua como num comício de mudos.
Se os puteiros de classe média fingiam de casa de família, aquilo ali semelhava um campo de concentração. Havia um clima de guerra, de banimento, de gueto, havia gás no ar, gestos de judeus, estrelas amarelas, febre no ar. Havia ali um grande escracho com a liberdade; aquela suja liberdade que todos tinham era uma coisa a ser enxovalhada, morta a pedradas, esfregada na cara de fregueses e de putas.
As mulheres estavam se vingando por estarem ali, prisioneiras livres, se vingando nas poses safadas, se vingando dos fregueses miseráveis que as olhavam, se vingando de si mesmas.
Foi então que aconteceu. De uma casa, em meio a súbita gritaria de pânico, um marinheiro mulato surgiu correndo desabalado e sumiu na esquina do Mangue em um segundo como um raio.
E na mesma porta, em câmera lenta, uma mulher apareceu, parada quase, completamente nua, muito, muito branca, usando apenas uma fita vermelha descendo-lhe entre os seios, obliquamente até a cintura, uma fita perfeita, rubra, como uma faixa de miss. Sua mão erguida com delicadeza apontava para cima e de seus dedos pingavam estrelas vermelhas como as flores do flamboyant que caiam em volta de Ciomara, lá no país remoto de onde eu tinha vindo. A mulher, muito branca, de cal, de gesso, não era uma missa com faixa; a fita vermelha perfeita era a navalhada que o amante tinha deixado antes de sumir na rua e, de seus dedos erguidos, o sangue caia como flores de uma árvore alta.
Muitos anos depois, eu vi as gravuras de Segall, como já disse, e vi também num museu aquela mulher do quadro de Delacroix, simbolizando a liberdade francesa, de seios nus, a "república" à frente dos cidadãos. E me lembrei sempre da mulher muito branca com a fita de sangue no busto.
Voltei para casa e não falei com ninguém, nem com Bené, nem com Cabeção.
Ciomara mudou logo depois para Botafogo e eu não a vi mais. Naquele dia, no Mangue, eu descobri o Brasil.



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