São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TEATRO

A alegria de Boal, autobiografada

Divulgação
O diretor Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido no início da década de 70, que lança sua autobiografia hoje no MAM-SP


ALVARO MACHADO
especial para a Folha

O teatrólogo carioca Augusto Boal atendeu à sugestão de sua editora inglesa. Há três anos, iniciou sua autobiografia, "Hamlet e o Filho do Padeiro", que a Record, sua nova editora no Rio de Janeiro, lança primeiro aqui, em bom português. O Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, abriga hoje noite de autógrafos. Antes, no mesmo endereço, Boal conversa com o público no "Encontro com o Autor".
Ao contrário do que se poderia esperar do criador do Teatro do Oprimido, o adjetivo "leve" é quase inevitável para descrever a principal qualidade de sua escritura. Página após página, o autor se desoprime e revela a alegria de viver, chegando a interromper narrativas de episódios históricos apenas para intercalar um episódio engraçado.
Ditadura militar, tortura e exílio deixaram suas marcas, mas hoje dificilmente Boal poderia reclamar da sorte. As técnicas do Oprimido, que ele começou a criar em sua temporada forçada no exterior, a partir de 71, constituem uma das grifes culturais brasileiras de maior sucesso internacional depois da bossa nova.
Completando 70 anos em 2001 com impressionante vitalidade, o diretor cumpre uma agenda internacional mais agitada que a de uma "prima donna" de ópera.
O ícone da esquerda brasileira acaba de retornar de Landskrona, no sul da Suécia, onde foi assistir a uma nova edição do Festival Escandinavo do Teatro do Oprimido, que reúne grupos da Suécia (incluindo as remotas Ilhas Faroë), Noruega, Dinamarca, Finlândia e Islândia. Em 99, o centro parisiense da técnica de Boal recenseou 70 países praticantes no mundo, incluindo Burkina Fasso, Uganda, Quênia e outros países africanos.
Boal explica que, na Austrália, Canadá e outras nações desenvolvidas, o ator-espectador trabalha menos sobre o tema da miséria material, como no Brasil ou África, e mais sobre racismo, sexismo ou alienação. Atendendo à demanda de classes tão vastas de discípulos, as traduções de seus livros para o inglês registram vendas significativas: apenas no ranking da livraria Amazon na Internet, os dez títulos disponíveis do autor venderam, individualmente, de 38 mil a 100 mil exemplares.
Este ano, entre outros compromissos, Boal vai a Munique (Alemanha) e três vezes para os EUA, onde dá palestras em diversas universidades e abre o evento anual Conferência de Pedagogia do Teatro do Oprimido, em Minneapolis (EUA), que costuma reunir mais de 700 participantes. No próximo ano, o teatrólogo ministra a aula inaugural de uma conferência mundial de psicoterapia de grupo em Toronto (Canadá), outra área profissional a utilizar suas teorizações.
Em 14 de julho próximo, Boal abre festival internacional no Palais Royal parisiense, com a sua "sambópera" "Carmen" (música de Bizet e tipos brasileiros), estreada no Rio em 99. Um mês antes, faz reaquecimento dessa montagem em teatro carioca. Leia a seguir trechos da entrevista do intelectual à Folha.

Folha - Sua autobiografia ressoa um tom jubiloso. Apesar de suas posições críticas, o senhor é feliz hoje, ou pelo menos otimista?
Augusto Boal -
No Brasil de hoje, ou mesmo no mundo, é muito difícil alguém em sã consciência se declarar feliz. Já dizia Sófocles que a pessoa só pode se dizer feliz no último dia de sua vida. Porém toda pessoa que luta por algo tem de ser otimista, acreditar. Eu creio essencialmente que as coisas podem ser transformadas, por pior que estejam, como é o caso do Brasil, um país gangrenado. A gente vê todo um poder estatal apodrecido e metade do povo morrendo de fome, analfabeto, sem saúde. Apesar dessa tristeza, é preciso pensar que dá para mudar. Sou muito feliz porque trabalho bastante e tenho amigos.

Folha - Falando em problemas, o senhor lembra em seu livro a interdependência econômica, para atacar a atual globalização...
Boal -
Desapareceu o espectro do comunismo e caiu o muro de Berlim, porém levantaram-se muitos outros muros de hipocrisia. Por exemplo, o muro do racismo contra árabes e turcos nos países europeus. No Brasil, além de muros extraordinários protegendo riquezas na casa dos trilhões, você ainda vê fossas, como a dos palácios medievais. A lei do salário mínimo afirma que esse valor deve ser capaz de sustentar um homem; mas, na prática, não permite sequer se vestir de mendigo para pedir esmola. Essas leis são pura demagogia. Na época da escravidão, pelo menos havia uma lei que autorizava isso. Hoje, a sociedade está informalmente dividida em três categorias: a primeira de detentores de poderes fabulosos; outra de consumidores de segunda classe; e uma terceira classe completamente jogada às traças, descartada.
A sociedade global vê tudo o que se passa no mundo inteiro, porém só o que lhe interessa. Entra no conflito Kuait-Iraque, por causa das riquezas do petróleo; mas não mexe um dedo para Serra Leoa (África), onde crianças são mandadas para morrer primeiro nas frentes de batalha e seus braços são cortados para que não lutem mais.

Folha - O senhor leva o teatro do oprimido também às favelas cariocas?
Boal -
Dirijo o Centro do Teatro do Oprimido no Rio, na Lapa, uma casa que está muito destroçada. Precisamos de patrocínios para reformas. Mas temos grupos ligados à favela de Jacarepaguá, ameaçados de expulsão de suas terras, e da favela da Maré, além de cinco grupos de comunidades muito pobres. Em SP, trabalhamos há três anos com a Prefeitura de Santo André, que institucionalizou o Teatro do Oprimido. Dentro do próprio governo local há um grupo que trabalha no orçamento participativo.

Folha - Pode falar sobre as próximas peças?
Boal -
Estou criando o gênero "boulevard macabro", com minhas peças "O Inimigo Oculto" e "A Herança Maldita". Nele conto o que é o Brasil hoje, mas, em vez de usar linguagem política, há o boulevard.

Evento: Encontro com o Autor
Com: Augusto Boal (na sequência, autografa sua autobiografia)
Quando: hoje, 19h30
Onde: MAM - auditório Lina Bo Bardi (pq. Ibirapuera, portão 3, tel. 0/xx/11/ 549-9688)
Quanto: entrada franca


Texto Anterior: Literatura: José Gil faz palestra na quarta-feira
Próximo Texto: Augusto Boal conta Augusto Boal ao pé do ouvido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.