São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


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RESENHA

Augusto Boal conta Augusto Boal ao pé do ouvido

especial para a Folha

Ali onde o gênero biográfico estava posto em sossego, Augusto Boal quis fazer irreverência. Enxertou graça, fingimento, encenação de teatro.
Em lugar de "autobiografia", classifica seu livro "Hamlet e o Filho do Padeiro" como "memórias imaginadas". E avisa de saída: "Mudei nomes, pessoas, personagens. Os fatos são verdadeiros, mas não aconteceram iguais ao meu jeito de contar: estilo existe!".
A história pode lançar um olhar de desprezo, mas Boal tem razão quando lembra que "memória é invasora", que as lembranças são ciumentas umas das outras, pouco confiáveis, e que muitas vezes "um detalhe vagabundo pensa merecer manchete e foto".
Esse prólogo justifica a multidão de pequenos fatos insurgentes a coalhar a biografia "inconfiável" do filho de padeiro português do bairro da Penha carioca, lá onde o penhasco estende degraus de provação à fé popular.
"Pátria existe!", também exclama o autor, já ao final do volume. Mas, se chegou até esse ponto, o leitor já se inteirou do fato, quando menos porque Boal elegeu ritmos de Guimarães Rosa, o brasileiro mais regional e universal, para compor não épico, nem lírica, mas crônica de cadeiras de balanço colocadas sob o alpendre, à tardinha. Um luxo, convenhamos, para um autor que sabe que logo será traduzido para o inglês, pela casa Routledge.
Fatos enormes não poderiam deixar de constar do volume, com datas corretas e nomes quase sempre reais.
Não foi o autor um dos maiores responsáveis por movimento de afirmação do teatro brasileiro nos anos 60, com uma série de montagens de dramas, comédias e musicais políticos que revelou a nata dos palcos, de Gianfrancesco Guarnieri a Maria Bethânia?
Não percorreu todo o calvário dos militantes de esquerda no quadro da ditadura militar?
E, já no exílio involuntário, não criou as técnicas do Teatro do Oprimido que os estrangeiros não cessam de festejar como coisa útil e prazerosa, e da qual até as angustiadas focas das Ilhas Färo já ouviram falar?

Conquistas
Do tipo que guarda todo recorte de jornal sobre suas conquistas e coleciona álbuns de fotos de registros de trabalho e de homenagens, Boal não deixa de contar o "Boal oficial" com sede de justiça social, assim como um dia o Arena contou Zumbi.
Mas também gasta as cem páginas iniciais de seu livro com acontecidos de infância onde só falta mesmo, na paisagem, um pé de laranja lima. Em compensação, nos apresenta o saudoso cabrito Chibuco, bicho que se submeteu heroicamente aos primeiros exercícios teatrais do pequeno Augusto, mas que um dia parece que não aguentou mais e lascou chifrada no peito do menino.
Um batismo dionisíaco, insinua o autor nas entrelinhas. Sim, apesar de um pedagogismo de fazer inveja a Platão, de uma vocação didática que neutralizou fronteiras e ódios políticos (e que se torna óbvia até em simples conversa telefônica), Augusto Boal também é um autor com entrelinhas. (AM)



Avaliação:    

Livro: Hamlet e o Filho do Padeiro
Autor: Augusto Boal
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (348 págs.)


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