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BIENAL DO LIVRO
Lygia Fagundes Telles tira do "escuro" de seus contos sua 1ª antologia, com 31 "nocautes literários"
A noite escura e ela
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
A simpática figura aqui ao lado
anda pelas ruas de São Paulo sem
que os passantes desconfiem que
ela é um Mike Tyson. Tyson não.
Talvez Muhammad Ali. Faz parte
do rol dos artistas do nocaute.
Lygia Fagundes Telles tem braços delicados. Não usa protetor
bucal, nem besunta o rosto para
distrair golpes adversários; mal
adversários tem. Nunca ouviu de
perto uma sineta anunciando o
próximo round. Derruba os outros com as duas mãos -dez dedos oblongos sobre uma pequena
máquina de escrever Olivetti verde musgo, comprada na Itália.
Impiedosa, a autora leva ao público na semana que vem a relação de seus nocautes "do coração". Lygia lança na 18ª Bienal do
Livro de São Paulo, com participação em debate na próxima sexta, "Meus Contos Preferidos".
Dona de extenso cartel de publicações, a escritora faz com este
volume, editado pela Rocco, a primeira antologia de suas narrativas breves. São 31 contos, 31
exemplos da repisada (e não por
isso menos brilhante) idéia difundida por Júlio Cortázar: "No combate entre um texto apaixonante e
seu leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto
deve ganhar por nocaute".
Com jeito de peso-pena, voz
pausada e gestos leves, Lygia responde com um "gancho" à velha
pergunta da diferença do conto e
do romance: "Um professor meu
do curso fundamental dizia que o
romance é o croquete de porta de
circo de cavalinho. O rabo e a cabeça do camarão, com bastante
trigo no meio. No conto, estaria o
camarão inteiro". Ela não concorda. Faz a esquiva: "O camarão tem
de estar inteiro sim, nos dois. O
leitor percebe quando é trigo".
Surpreender o oponente, que
esperava qualquer coisa que não
analogias com croquetes de camarão, é praxe nos contos da autora de "A Noite Escura e Mais
Eu". O ambiente noturno de suas
histórias bem pode começar com
formiguinhas andando por um
casarão e terminar com a ossada
de um anão. Mas, mais do que
surpresa, a matéria-prima é ambigüidade. "O ser humano é incontrolável, indefinível e inacessível", diz a escritora à Folha.
"Pronto. Três "is': incontrolável,
indefinível e inacessível", repassa.
"Por mais que você procure se
aproximar do ser humano, ele
nos escapa. Como a própria morte."
Não são poucos os mortos nos
textos de Lygia. Não é fortuita a ligação da autora do livro "Mistérios" com os mistérios, com Edgar Allan Poe (do rol de seus prediletos, encabeçado por Machado
de Assis), com os filmes de terror,
tema de um grosso livro de arte
deitado na estante de sua sala.
De onde virão essas noites escuras mais Lygia? Contadora de histórias das boas ("Ela é a primeira-dama do conto brasileiro", diz à
Folha Marçal Aquino; "Não há
escritor brasileiro que não bata a
cabeça para Lygia", adiciona Ivana Arruda Leite; "É uma escritora
que domina a narrativa breve como poucos no Brasil", testemunha Milton Hatoum), ela conta.
"Na infância, um mistério me
puxou pela manga. Desde então o
indefinível sempre me atraiu."
Mais paulistana dos grandes escritores brasileiros, ela morou um
breve tempo no interior do Estado, Sertãozinho. Um dia, a menina "solitária, quieta e chorona"
estava num canto, bordando, e a
mãe lhe ofereceu uma história.
Falou de uma bisavó chamada
Elzira, que escrevia versos com
penas de ganso, tocava cravo e
gostava de se debruçar nas janelas. Recém-formado em São Paulo, em medicina, um moço de nome doutor Paixão passava sempre a cavalo, com um sorriso e um
leve toque no chapéu. Encontraram-se pela primeira vez em uma
novena. Apaixonaram-se. E Paixão foi pedir a mão de Elzira.
"Só esqueceu que era mestiço.
Apesar de médico, era pobre e
mulato. A família achou loucura."
Paixão ficou de coração partido.
Encontrou com a moça uma última vez, em dia de tempestade, e
se mandou para São Paulo. "Ela
chegou em casa outra pessoa. Não
escreveu mais versos, não tocou
mais o cravo, comia e falava pouco. Todas as noites punha no peito uma toalha ensopada de água.
Ficou tuberculosa. Seis meses depois da partida dele, morreu."
"Quiseram chamar o doutor
Paixão. Mas não havia naquele
tempo jornal nem internet. Ele
nem soube da morte dela."
Sertãozinho, o nome diz, era cidade seca. Não havia nenhuma
flor em seus jardins para pôr na
sepultura da morta. E, de repente,
toca uma sineta. "Chega um moço lindo, com uma braçada de lírios recém-colhidos para cobrir o
caixão de Elzira."
As flores não tinham cartão, e o
pai de Elzira corre para falar com
o mensageiro. "O homem evaporou na frente dele. Era um anjo."
Foi assim que Lygia casou-se
com os mistérios, com o "aquilo
que poderia ter sido e não foi".
O "que foi" não lhe interessa
muito. O que pode ser e está sendo, sim. Sobre a escrivaninha tem
um cachorro cor-de-rosa de pelúcia com uma estrela do PT. "Ele se
chama Palocci, o único que se salva nessa nau de insensatos."
Lygia não deixa barato. Toca a
sineta, começa outro round e ela
continua a sua série de nocautes.
MEUS CONTOS PREFERIDOS. Autora:
Lygia Fagundes Telles. Editora: Rocco.
Quanto: preço a definir.
Colaborou Alexandra Moraes, da
Redação
Leia a lista de contos preferidos de Lygia
Fagundes Telles e depoimentos sobre
ela dos escritores Marçal Aquino, Ivana
Arruda Leite e Milton Hatoum na Folha
Online (www.folha.com.br)
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