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DRAUZIO VARELLA
Guerra ao tráfico?
É ilusão imaginarmos que a
polícia vencerá a guerra contra o tráfico. Basta olharmos para
os americanos, que investem US$
10 bilhões anuais para manter o
mais organizado aparato policial
de repressão que se tem notícia:
são os maiores consumidores de
drogas ilícitas do mundo. Na década de 1960, cerca de 100 mil
americanos fumavam maconha
regularmente; em dezembro de
2003, havia 14 milhões de usuários habituais e 70 milhões de
usuários ocasionais.
As razões para o fracasso da estratégia repressiva são múltiplas e
fáceis de entender. Vejamos algumas delas:
1) Quando a abelha encontra
néctar numa flor, a sensação de
prazer que sente é conseqüência
da liberação de octopamina em
determinadas áreas do sistema
nervoso central. Quando um adolescente cheira cocaína, a euforia
experimentada é conseqüência
do aumento da concentração de
dopamina no cérebro. Como a semelhança dos nomes indica, esses
neurotransmissores são substâncias químicas muito parecidas.
Na evolução das espécies, apesar da linhagem que deu origem
aos insetos ter divergido daquela
que levou aos mamíferos há mais
de 300 milhões de anos, reconhecer sensações que proporcionam
prazer ao corpo foi tão essencial à
sobrevivência dos animais que
abelhas e homens conservaram
praticamente as mesmas características de um dos neurotransmissores responsáveis por elas.
Quando o adolescente leva um
cigarro de maconha ou o cachimbo de crack à boca, está criando
um atalho para enganar seu cérebro através de um mecanismo
evolucionista arcaico, que uma
vez disparado algumas vezes escapará do controle voluntário,
provocando dependência química, doença crônica, recidivante,
difícil de tratar.
2) Para o sucesso comercial de
determinado produto, o custo do
transporte é crucial. Plantar tomates no norte de Mato Grosso
para vendê-los nas feiras livres de
São Paulo levaria o produtor à falência. Quando a mercadoria é
uma droga ilícita, no entanto, o
custo do transporte fica desprezível. Senão vejamos: um quilo de
cocaína na Colômbia ou na Bolívia custa US$ 2.000. Em São Paulo ou Rio de Janeiro, depois de
"batizada" para aumentar o rendimento, essa quantidade de droga poderá render US$ 20 mil. Se
um vendedor encomendar 500
quilos e o traficante pedir a absurda quantia de US$ 500 mil para trazê-la dos países vizinhos,
que diferença fará? Apesar do aumento de mil dólares por quilo representar 50% do preço do produto, a margem de lucro continuará
estratosférica.
3) Lucros dessa magnitude, numa atividade não sujeita à taxação pela Receita Federal, recolhimento de obrigações trabalhistas
e demais impostos que sufocam a
produção em nosso país, têm um
poder de corrupção irresistível.
Não sejamos ingênuos: bocas-de-fumo são pontos de comércio estabelecidos em endereços acessíveis aos usuários. Se eles, e até os
cidadãos que não consomem drogas, sabem onde encontrá-las, só
a polícia treinada para combatê-las é que não tem idéia dos locais
em que estão situadas?
Quando os jornais noticiam que
apenas na favela da Rocinha o
tráfico movimenta 10 milhões de
reais por semana, como as autoridades não conseguem identificar
os mecanismos financeiros empregados na lavagem de quantias
tão astronômicas? Por que razão
os traficantes mais poderosos escapam das cadeias pela porta da
frente graças a habeas corpus impetrados por advogados de saber
jurídico precário? Quantos representantes do povo são eleitos às
custas do dinheiro do tráfico?
Por razões como essas, alguns
especialistas sugerem que a única
forma eficaz de combater o tráfico seria acabar com a ilegalidade
da comercialização. Sem entrar
no mérito da discussão técnica,
tal sugestão é de pouco valor, porque não existe a menor possibilidade de ser colocada em prática.
Primeiro, porque a sociedade não
está disposta a assistir ao aumento expressivo do número de consumidores, que certamente ocorreria numa primeira fase. A experiência com a legalização de drogas como o álcool e a nicotina
mostra que o número de usuários
dependentes passa a ser contado
aos milhões. Segundo, porque o
Ocidente jamais permitiria. Enquanto os norte-americanos não
abandonarem a política de guerra militar contra as drogas como
estratégia-mãe para combatê-las,
as experiências de trazer o consumo para a legalidade ficarão restritas ao comércio de maconha
em países desenvolvidos como a
Holanda.
O que fazer, então?
A lei da oferta e da procura garante sobrevivência perene ao
tráfico. A mais ferrenha repressão
policial tem o poder de aumentar
o preço da droga no mercado, e
com isso talvez diminuir o consumo, jamais o de acabar com ele.
Mantida a proibição do uso de
drogas e a estratégia militar de
combate ao tráfico, só nos resta
uma alternativa para reduzirmos
os danos sociais: diminuir o número de usuários. Nessa área
quase nada temos feito: não oferecemos tratamento para os dependentes que desejam mudar de
vida, nem educamos as novas gerações para impedir que novos
usuários se juntem às legiões dos
já existentes.
Independentemente da necessidade de encontrarmos alternativas mais sensatas para combater
o tráfico do que o simples uso da
força bruta, necessitamos urgentemente multiplicar pelo país o
número de centros para tratamento de dependência química e
de programas educativos agressivos que ensinem já na escola primária, em casa e através dos
meios de comunicação de massa
que as drogas psicoativas modificam a arquitetura do cérebro,
provocando uma doença neurológica crônica, destruidora, que
acaba com os prazeres da vida.
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