São Paulo, sábado, 17 de abril de 2010

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ANTONIO CICERO

Antony Flew e Deus


Se não há nada que uma pretensa proposição negue, então ela nada significa; nada afirma


HÁ ALGUNS dias faleceu, aos 87 anos, o filósofo inglês Antony Flew. Tendo sido, quase toda a vida, um vigoroso defensor do ateísmo, Flew adquiriu, já na velhice, notoriedade fora do ambiente acadêmico, ao declarar que se tornara deísta. Os deístas, como se sabe, não acreditam no Deus que as religiões positivas descrevem, mas num deus cujo conceito derivam inteiramente da razão e que, depois de criar o mundo, dele se ausentou. É o que Pascal chamava de "deus dos filósofos", em oposição ao Deus de Abraão. Tanto Voltaire quanto, por exemplo, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, que Flew citava, consideravam-se deístas.
Embora, enquanto deísta, Flew rejeitasse o cristianismo, certos defensores do design inteligente, como Roy Abraham Varghese, e evangélicos como Bob Hostetler ficaram entusiasmados com o "ateu que virara a casaca". Varghese chegou a assinar um livro em parceria com Flew, intitulado "Há um Deus: de que Modo o Mais Notório Ateísta do Mundo Mudou de Ideia".
Na verdade, Flew confessou ao jornalista Mark Oppenheimer -que preparava um artigo sobre ele para a revista do "New York Times"- que o livro tinha sido escrito por Varghese. Segundo Flew, quando Varghese lhe mostrou o livro pronto, ele o aprovou, pois se considerava "velho demais para esse tipo de coisa", isto é, para escrever.
É melancólica a história, contada por Oppenheimer no artigo citado, da exploração da senilidade de Flew. Mas quero falar aqui de algo mais pitoresco e estimulante, que é o ensaio "Teologia e Falsificação", que Flew escreveu no auge dos seus poderes mentais e que merece ser mais conhecido no Brasil.
Ele começa com uma modificação da "Parábola dos Jardineiros", do filósofo inglês John Wisdom. Trata-se do seguinte. Dois exploradores chegam a uma clareira florida. Um deles acha que deve haver algum jardineiro cuidando da clareira, mas o outro não concorda. Para resolver a questão, montam guarda, mas não aparece ninguém. O explorador que crê na existência de um jardineiro supõe então que este seja invisível. Para testar essa hipótese, fazem uma cerca de arame farpado em torno da clareira, e põem cães a guardá-la. Nada acontece, porém.
Contudo, o crente não desiste. Segundo ele, o jardineiro pode ser invisível, intangível, insensível a choques elétricos e inodoro. E aí o cético, perdendo a paciência, lhe pergunta: "Em que é que um jardineiro invisível, intangível e imperceptível seria diferente de um jardineiro imaginário, ou de um jardineiro inexistente?".
Nesse ponto, Flew observa que afirmar uma coisa equivale a negar a negação dessa coisa. Toda afirmação implica a negação de tudo o que nega a verdade dela. Por exemplo, a proposição "todos os cisnes são brancos", que era considerada verdadeira séculos atrás, implica a proposição "nenhum cisne é não branco". Quando foram descobertos cisnes pretos na Austrália, revelou-se que era falsa a proposição "todos os cisnes são brancos".
Se o enunciado "todos os cisnes são brancos" tivesse sido compatível com a descoberta de que alguns cisnes são pretos, então ele simplesmente jamais teria realmente significado ou afirmado coisa nenhuma, pois daria no mesmo afirmá-lo ou negá-lo. Para que significasse e afirmasse alguma coisa, era necessário que ele pudesse ter sido negado pela descoberta de cisnes não brancos.
Se não há nada que uma pretensa proposição negue, então ela nada significa; logo, nada afirma: não passa de uma pseudoproposição. Ora, Flew afirma que assim são proposições tais como "Deus existe", "Deus nos ama como um pai ama um filho" etc. Segundo ele, não há nenhum acontecimento que possa fazer os religiosos que as afirmam voltarem atrás e confessarem: "No final das contas, Deus não existe"; ou: "De fato, Deus não nos ama".
Digamos que vemos uma criança morrendo de um câncer inoperável na garganta. Seu pai terrestre fica desesperado, mas seu pai divino não parece se importar. O religioso que nos garantiu que Deus nos ama provavelmente dirá algo como "o amor de Deus não se confunde com o humano" ou "os desígnios de Deus são inescrutáveis". E Flew pergunta (como o explorador que duvida da existência do jardineiro): "Mas então exatamente o que teria que acontecer para que tivéssemos o direito lógico de dizer "Deus não nos ama" ou mesmo "Deus não existe'?".
Caso nos respondam que nada que aconteça seria capaz de fazer isso, então, conclui Flew, na verdade enunciados tais como "Deus existe" nada significam ou afirmam.


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