São Paulo, sexta, 17 de abril de 1998

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Álbum é provocativo à MPB e ao tecno

da Reportagem Local

A gritaria não deve tardar, mas é bobagem praguejar contra a "conversão" de Lobão ao tecno. Como bem ele diz, "Noite" não é CD tecno, não é feito para pistas de dança nem para clubbers. É disco brasileiro, feito para brasileiros.
Aí Lobão revela-se mais provocativo que nunca. A mensagem é clara, cristalina: música popular brasileira, para ele, não é -como para, de resto, o resto quase integral de seus colegas- sinônimo de estagnação.
Lobão não domina linguagens de tecno ou rock industrial à Nine Inch Nails. Usa-as desordenadamente. Os códices drum'n'bass são vilipendiados já de início -na faixa-título, a linguagem é revestida de vocais estridentes, bravos, nada drum'n'bass.
"Noite" é um compêndio de poemas sombrios, pessimistas, às vezes assustadores. A melodia existe, mas não é prioridade -poucas faixas (e destas "24 Horas" é a mais notável) são cantaroláveis, radiofônicas.
Não há concessões a facilidades, os versos doem: "O grito é a fuga do silêncio" ("O Grito"), "talvez hoje seja simplesmente véspera de nada" ("A Véspera"), "me abraça e esquece todo o luto que este mundo tem" ("Sozinha Minha").
No instante mais debochado do CD, "Samba da Caixa Preta", Lobão destila indignação pela permanência das mazelas nacionais, usando como pretexto o oba-oba pelas Olimpíadas cariocas ("aqui o narciso é carioca, não morre afogado, mergulha, dá um jeito/ se transforma em peixe ornamental", denúncia contra a burrice).
Aí mesmo desafia os clichês do orgulho nacional, invertendo em "minha alma chora" a máxima jobiniana ("minha alma canta/ vejo o Rio de Janeiro"). Parecerá ranhetice aos mais contentes, mas é declaração de amor.
Lobão flagra-se numa corda bamba. Insuflado de indignação (e dizem que isso está fora de moda), procura perverter a um tempo a mesmice MPB (via provocações tecno) e a nova apatia tecno (injetando discurso numa linguagem que quer expulsar o discurso de sua estrutura).
Sabe que não domina à perfeições as linguagens em que se embrenha, que continua a não buscar excelência nos modos de cantar. Sabe, enfim, que virar tecno guarda lá sua dose de caretice.
Mas justo aí se esclarece que Lobão entrou, definitivamente, na vida adulta. Pois dá-se ao luxo da sabedoria, ao definir "Noite" como mais careta que seu antecessor, "Nostalgia da Modernidade".
De fato, Lobão concebeu agora um disco menos radical que aquele. Até nisso exibe pulso: "Nostalgia", um dos discos cruciais dos anos 90 no Brasil, não foi minimamente compreendido.
A pulga continua atrás daquela orelha, "Noite" é um sucedâneo, não uma superação. Em "Nostalgia", Lobão pedia passagem como compositor popular de verve, de samba, rock e maracatu, superior a rótulos ou compartimentos.
Depois de mortos -talvez só por isso-, seus contemporâneos Cazuza e Renato Russo acabaram elevados ao pódio dos grandes compositores brasileiros. Lobão não precisa estar morto para que sua propriedade seja reconhecida -"Nostalgia" cumpriu esse papel.
Diante dele, o sistema se retraiu, fechou guarda -"você só dá valor e amor ao que te cega" ("Síndrome de Brega", 88) ainda é frase-chave em sua obra. Teimoso, usa foice para cortar o mato cerrado. (PAS)
Disco: Noite Artista: Lobão Lançamento: Universal Quanto: R$ 18, em média


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