São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2001

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CANNES

Diretor americano exibiu "Mulholland Drive", com reviravoltas habituais, ontem na competição oficial do festival

Lynch apresenta seu mundo esquisito em novo longa

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Há alguns anos, entusiasmados pelo sucesso e pela criatividade de "Twin Peaks", os executivos da emissora norte-americana ABC deram carta branca ao cineasta David Lynch para que desenvolvesse e levasse a eles o projeto de uma nova série de TV. Eles sabiam que a cabeça do autor de "Veludo Azul" é um dos lugares mais estranhos do planeta, mas também que a história de Laura Palmer é ainda hoje um dos maiores sucessos televisivos.
Semanas depois, Lynch apresentou sua idéia. Começava com um acidente de carro na Mulholland Drive, estrada da Califórnia que liga a praia ao centro de Los Angeles e onde moram vários endinheirados de Hollywood. Da batida resultavam alguns corpos, uma atriz morena com amnésia que iria conhecer uma loira aspirante a estrela, e ambas partiriam para encontrar a verdadeira identidade da amiga.
E então?, perguntaram.
Então, respondeu Lynch, só comprando o resto da série para saber. Eles compraram, ele fez um piloto de duas horas e meia, mas o programa foi cancelado antes mesmo de ir ao ar.
"Muito esquisito", disseram, o mesmo que definir um CD do Sepultura como "muito barulhento"; quer dizer, ou você sabe o que está comprando ou não sabe.
O cineasta, que já atribuiu uma maré de má sorte que teve a uma aparição na capa da "Time" ("Dá dois anos seguidos de azar, me disseram"), não desistiu.
Com o dinheiro do francês Studio Canal, reeditou o piloto, especialmente o final, e o resultado é o longa "Mulholland Drive", que o Festival de Cannes exibiu ontem como parte da competição oficial.
Não é a primeira vez do cineasta de Montana, EUA, no evento francês. Lynch ganhou a Palma de Ouro de 1990 por "Coração Selvagem" e concorreu ainda em 1992 ("Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer") e 1999 ("A História Real", ainda inédito no Brasil). Não parece provável que leve algo desta vez.
Não porque o filme seja ruim. É um ótimo título, se analisado isolado. Mas, visto no conjunto da obra de Lynch, dá impressão de que repete fórmulas consagradas pelo diretor. Assim, há ligação com o sobrenatural, que acontece sempre atrás da velha cortina vermelha; personagens bizarros, como um caubói albino e um mendigo quase sobrenatural.
Estão lá a trilha sonora sombria de Angelo Badalamenti, que aliás faz uma ponta como um mafioso italiano muito exigente com a maneira como seu "expresso" é servido; e até mesmo o anão que falava ao contrário em "Twin Peaks" (o ator prejudicado verticalmente Michael J. Anderson), agora como um poderoso chefão.
Mas, principalmente, está lá a reviravolta no meio da trama, como em "A Estrada Perdida" (Lost Highway, 1997). A diferença aqui é que os atores continuam os mesmos, mas os papéis mudam. Assim, Rita (Laura Herring), a amnésica, e Betty (Naomi Watts), a aspirante, depois de visitar um show bizarro e sobrenatural no meio da noite, viram um casal de lésbicas em crise.
"Mulholland" chega a ser engraçado em alguns momentos; parece ser o mais próximo a que Lynch consegue chegar da comédia. Por exemplo, na hora em que um matador de aluguel assassina um amigo. Quando vai armar a cena para parecer que foi suicídio, o sujeito atira na parede e o disparo atinge sem querer a perna de uma senhora imensa do outro lado.
Acaba tendo de matá-la sufocada, mas então chega o faxineiro, que ouviu os barulhos. Ele vai ter de morrer também, mas, ao fazer isso, o matador dispara o alarme de incêndio. O negócio vai ser fugir pela escada de emergência.
Enquanto isso, um close na ponta de um cabelo da primeira vítima mostra que o tiro fatal arrancou pedacinhos de seu cérebro...



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