São Paulo, sexta-feira, 17 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Notícia da terrível batalha entre garruchas e punhais

Nos primeiros dias daquelas férias, que começavam na semana entre o Natal e o Ano Novo, antes mesmo de irmos para nossa fazenda em Itaipava, dei um jeito de machucar o ombro e tive de ficar no Rio, em casa dos pais, para colocar em ordem o esqueleto avariado. Somente no final de janeiro pude me juntar ao pessoal do seminário.
Encontrei a minha turma, a de São Luiz Gonzaga, em pé de guerra. Nem sei como a coisa começara. Tínhamos uma divisão genérica para efeito de disciplina, refeitório, horário de banho etc. Era a divisão entre evangelho e epístola, de acordo com o lado que ocupávamos na capela o pessoal à direita do altar era a epístola, à esquerda era o evangelho. Em todas as comunidades religiosas prevalecia esta divisão básica, no futebol havia a seleção do evangelho e a seleção da epístola, não se tratava de uma linha imaginária como a do Equador, mas de um divisor de águas real, que nos separava até mesmo nas provas, os professores chamavam primeiro os alunos do evangelho, depois os da epístola. Na limpeza da capela, uma semana ficava a cargo do pessoal de um dos lados, e assim tudo mais.
Não, não foi essa a divisão que encontrei. Como disse, não sei como a guerra começara, mas encontrei a minha turma numa briga feroz, que não respeitara sequer a tradicional divisão entre evangelho e epístola.
São Luiz Gonzaga, com seus 40 e tantos alunos, estava dividido entre garruchas e punhais. Isso mesmo: garruchas e punhais. Os dois lados haviam rompido as relações diplomáticas, demarcaram territórios próprios, tudo era exclusivo de um lado e de outro, as fontes de água, as árvores, os quiosques que padre Cipriano construía com esmero, cobertos de sapê e cheirando a embaúba -madeira macia com que fazia os bancos octogonais onde ouvíamos suas histórias.
Um grupo não falava com outro, era crime de alta traição, à entrada da capela, um garrucha oferecer a água-benta a um punhal. Até mesmo o ""Angelus", que rezávamos nos recreios ao meio-dia e às seis da tarde, era recitado em dois grupos distantes, para evitar o maléfico contágio.
Foi nesse clima de Bósnia, de Oriente Médio, que encontrei a minha turma. E como não sabia por que estavam brigando, optei por me tornar agente duplo dos dois lados, sendo tolerado e aceito por ambas as partes, o que me valia certa consideração, pois havia agentes duplos clandestinos, que serviam aos dois senhores de forma ignóbil, e que na verdade criara uma suspeição geral, pois, tirante os agentes duplos reconhecidos como tal (eu entre eles), todos os demais podiam ser agentes duplos disfarçados -o que aumentava a rivalidade e o ódio entre as facções.
Foi marcada uma luta para o final das férias, logo após o Carnaval, quando deveríamos retornar ao Rio e iniciarmos o ano letivo. O nosso armagedom seria travado com babas-de-boi, um coquinho do tamanho de uma bola de gude, duro e abundante em todos os recantos da fazenda. Colher e armazenar baba-de-boi era a tarefa primordial de ambos os lados, havia um código secreto de ambas as partes para a avaliação do arsenal respectivo, dizia-se que os garruchas tinham 5.000 coquinhos e os punhais, apenas 3.500, mas os coquinhos dos punhais eram mais duros porque mais verdes, sem a polpa amarelada dos coquinhos maduros. Numa guerra convencional, equivaliam a um arsenal nuclear.
Uma de minhas funções, como agente duplo, era dar informes errados aos dois lados sobre o arsenal de cada bando. Como devia mentir para os dois contendores, não me preocupava com o rigor histórico dos fatos, inventava cifras e condições. Isso me impedia de cultivar o sentimento básico daquela guerra, que era o ódio mortal de um garrucha contra o punhal e vice-versa.
Veio o Carnaval, as quaresmeiras começaram a botar para fora suas flores roxas enquanto padre Cipriano botava os paramentos roxos da Quaresma para tomar sol e perder o mofo das imensas gavetas de jacarandá em que ficavam o ano todo.
A batalha foi marcada numa complicada negociação em que tomei parte: logo após a missa de Quarta-Feira de Cinzas, ainda com as testas lambuzadas com as cinzas litúrgicas. Tudo estava pronto, cada lado tinha suas trincheiras, seu arsenal, suas defesas e seus corredores de ataque. Ao contrário de uma guerra de verdade, não havia sequer uma terra-de-ninguém, tudo era de todos e nada era de ninguém.
Na última hora, padre Cipriano ainda tentou um armistício, assim ele era considerado o mais importante agente duplo não tolerado, ninguém aceitou suas propostas de adiar o conflito para as férias de julho.
Foi uma batalha campal, a única a que assisti e na qual tomei parte compulsória, dando e levando coquinhos de baba-de-boi. Alguns baixaram à enfermaria, houve um garrucha que quase ficou cego, e um punhal com um coquinho entalado na garganta teve de ir ao pronto-socorro em Petrópolis. Por que lembrei essa guerra de garruchas e punhais? Não sei. Mas lembrado está.



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