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CARLOS HEITOR CONY
Notícia da terrível batalha entre garruchas e punhais
Nos primeiros dias daquelas férias, que começavam na semana entre o Natal e o
Ano Novo, antes mesmo de irmos
para nossa fazenda em Itaipava,
dei um jeito de machucar o ombro e tive de ficar no Rio, em casa
dos pais, para colocar em ordem o
esqueleto avariado. Somente no
final de janeiro pude me juntar
ao pessoal do seminário.
Encontrei a minha turma, a de
São Luiz Gonzaga, em pé de guerra. Nem sei como a coisa começara. Tínhamos uma divisão genérica para efeito de disciplina, refeitório, horário de banho etc. Era a divisão entre evangelho e epístola, de acordo com o lado que
ocupávamos na capela o pessoal à
direita do altar era a epístola, à
esquerda era o evangelho. Em todas as comunidades religiosas
prevalecia esta divisão básica, no
futebol havia a seleção do evangelho e a seleção da epístola, não se
tratava de uma linha imaginária
como a do Equador, mas de um
divisor de águas real, que nos separava até mesmo nas provas, os
professores chamavam primeiro
os alunos do evangelho, depois os
da epístola. Na limpeza da capela, uma semana ficava a cargo do
pessoal de um dos lados, e assim
tudo mais.
Não, não foi essa a divisão que
encontrei. Como disse, não sei como a guerra começara, mas encontrei a minha turma numa briga feroz, que não respeitara sequer a tradicional divisão entre
evangelho e epístola.
São Luiz Gonzaga, com seus 40
e tantos alunos, estava dividido
entre garruchas e punhais. Isso
mesmo: garruchas e punhais. Os
dois lados haviam rompido as relações diplomáticas, demarcaram
territórios próprios, tudo era exclusivo de um lado e de outro, as
fontes de água, as árvores, os
quiosques que padre Cipriano
construía com esmero, cobertos
de sapê e cheirando a embaúba
-madeira macia com que fazia
os bancos octogonais onde ouvíamos suas histórias.
Um grupo não falava com outro, era crime de alta traição, à
entrada da capela, um garrucha
oferecer a água-benta a um punhal. Até mesmo o ""Angelus",
que rezávamos nos recreios ao
meio-dia e às seis da tarde, era recitado em dois grupos distantes,
para evitar o maléfico contágio.
Foi nesse clima de Bósnia, de
Oriente Médio, que encontrei a
minha turma. E como não sabia
por que estavam brigando, optei
por me tornar agente duplo dos
dois lados, sendo tolerado e aceito
por ambas as partes, o que me valia certa consideração, pois havia
agentes duplos clandestinos, que
serviam aos dois senhores de forma ignóbil, e que na verdade criara uma suspeição geral, pois, tirante os agentes duplos reconhecidos como tal (eu entre eles), todos os demais podiam ser agentes
duplos disfarçados -o que aumentava a rivalidade e o ódio entre as facções.
Foi marcada uma luta para o final das férias, logo após o Carnaval, quando deveríamos retornar
ao Rio e iniciarmos o ano letivo.
O nosso armagedom seria travado com babas-de-boi, um coquinho do tamanho de uma bola de
gude, duro e abundante em todos
os recantos da fazenda. Colher e
armazenar baba-de-boi era a tarefa primordial de ambos os lados, havia um código secreto de
ambas as partes para a avaliação
do arsenal respectivo, dizia-se que
os garruchas tinham 5.000 coquinhos e os punhais, apenas 3.500,
mas os coquinhos dos punhais
eram mais duros porque mais
verdes, sem a polpa amarelada
dos coquinhos maduros. Numa
guerra convencional, equivaliam
a um arsenal nuclear.
Uma de minhas funções, como
agente duplo, era dar informes errados aos dois lados sobre o arsenal de cada bando. Como devia
mentir para os dois contendores,
não me preocupava com o rigor
histórico dos fatos, inventava cifras e condições. Isso me impedia
de cultivar o sentimento básico
daquela guerra, que era o ódio
mortal de um garrucha contra o
punhal e vice-versa.
Veio o Carnaval, as quaresmeiras começaram a botar para fora
suas flores roxas enquanto padre
Cipriano botava os paramentos
roxos da Quaresma para tomar
sol e perder o mofo das imensas
gavetas de jacarandá em que ficavam o ano todo.
A batalha foi marcada numa
complicada negociação em que
tomei parte: logo após a missa de
Quarta-Feira de Cinzas, ainda
com as testas lambuzadas com as
cinzas litúrgicas. Tudo estava
pronto, cada lado tinha suas trincheiras, seu arsenal, suas defesas e
seus corredores de ataque. Ao
contrário de uma guerra de verdade, não havia sequer uma terra-de-ninguém, tudo era de todos
e nada era de ninguém.
Na última hora, padre Cipriano
ainda tentou um armistício, assim ele era considerado o mais
importante agente duplo não tolerado, ninguém aceitou suas
propostas de adiar o conflito para
as férias de julho.
Foi uma batalha campal, a única a que assisti e na qual tomei
parte compulsória, dando e levando coquinhos de baba-de-boi.
Alguns baixaram à enfermaria,
houve um garrucha que quase ficou cego, e um punhal com um
coquinho entalado na garganta
teve de ir ao pronto-socorro em
Petrópolis. Por que lembrei essa
guerra de garruchas e punhais?
Não sei. Mas lembrado está.
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