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São Paulo, sábado, 17 de maio de 2003

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BIENAL DO LIVRO

Em ensaio, autor trata da tristeza ao longo da história e no Brasil

Scliar constrói "gabinete de curiosidades" da melancolia

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

No seu famoso estudo sobre o drama barroco alemão, Walter Benjamin notava a predileção da literatura do século 17 por tudo aquilo que jaz em ruínas: "O fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca".
O acúmulo de reminiscências antigas, elementos clássicos, passagens pitorescas não se apresentava unificado por meio de uma ordem arquitetural harmoniosa, mas surgia como uma justaposição melancólica de objetos, contemplados por um espectador consciente dos poderes da morte. A história, assim, era vista não da perspectiva do prisma do progresso, mas sim sob o do efêmero, do transitório, do funéreo.
Ninguém melhor do que um médico, sem dúvida, para encarar as coisas a partir de um olhar "saturniano", isto é, melancólico; e, se esse médico é também um escritor notável pela ironia, pela compaixão, pela aguçada sensibilidade crítica diante do absurdo das crenças humanas -estamos falando de Moacyr Scliar-, tende a despertar grande interesse o livro que a Companhia das Letras acaba de lançar.
"Saturno nos Trópicos" é um ensaio relativamente longo, dividido em duas partes. Na primeira, Scliar -que é colunista da Folha- reúne considerável quantidade de informações sobre a história da melancolia no Ocidente, desde as teorias médicas da Antiguidade e os relatos sobre as tristezas de alma da tradição bíblica até as elaborações de Robert Burton (1577-1640?) em sua "Anatomia da Melancolia". O triunfo da morte durante os anos da Peste Negra, as aventuras de Dom Quixote (o ressecado e errante Cavaleiro da Triste Figura), as gravuras de Dürer, a alquimia e seus remédios, os primeiros hospícios europeus, Hamlet e Fausto, a teoria das paixões segundo Descartes não escapam desse abrangente e algo trepidante retrospecto.
Na segunda parte, o autor examina algumas formas da "melancolia brasileira". Começando, como não poderia deixar de ser, pela famosa saudade portuguesa, Scliar se refere longamente ao ensaio de Paulo Prado, "Retrato do Brasil", ao Jeca Tatu de Monteiro Lobato, ao Macunaíma de Mário de Andrade, à Macabéa de "A Hora da Estrela", romance de Clarice Lispector.
Um Macunaíma melancólico? Em que a célebre preguiça do herói "sem nenhum caráter" poderia confundir-se com a negatividade soturna de algum príncipe louco do barroco alemão? O próprio Scliar rejeita essa aproximação, como também discute, com crescente ceticismo, as teorias de Paulo Prado a respeito das "três raças tristes" que estariam na raiz de nossa nacionalidade. Entram no cortejo das associações do autor outras personagens, como o Dom Casmurro de Machado de Assis, o Policarpo Quaresma de Lima Barreto, o Antônio Conselheiro de Euclides da Cunha.
E também as instituições e costumes que servem como antídoto à melancolia. O Carnaval, a caipirinha, o açúcar, o café. A estrutura maníaco-depressiva não é, contudo, típica dos brasileiros apenas: Scliar nota uma "bipolaridade" que é típica do mundo moderno, tanto na economia quanto nos estados de ânimo, como se pode ver em casos como a famosa febre especulativa em torno do preço das tulipas, na Holanda do século 18.
O livro de Scliar vai se compondo, assim, de uma série de informações e referências variadas, um pouco ao estilo de um "gabinete de curiosidades" em que a etimologia da palavra "saudade" ombreia com um resumo de "O Alienista", de Machado de Assis, ou com um breve relato da Revolta da Vacina, por exemplo. Assim, o tema da melancolia parece constituir menos o motivo para a exposição de alguma tese pessoal do autor, e sim o ponto a partir do qual suas idéias e conhecimentos se desagregam em várias direções, nem todas muito inusitadas.
Caberia perguntar se essa impessoalidade, essa estrutura centrífuga, esse espírito de inspeção ao mesmo tempo minucioso e distante não fazem desse livro sobre a melancolia um objeto ele próprio melancólico, marcado pelo acúmulo e pela fragmentação; e é como se "Saturno nos Trópicos" se tornasse, então, um livro tão cheio de interesse para quem o lê quanto destituído de ímpeto, de motivação fundamental, ao ter sido escrito.


Saturno nos Trópicos
     Autor: Moacyr Scliar Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29 (253 págs.) Lançamento: o autor lê trechos do livro na Bienal amanhã, às 18h



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