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BIENAL DO LIVRO
Em ensaio, autor trata da tristeza ao longo da história e no Brasil
Scliar constrói "gabinete de curiosidades" da melancolia
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
No seu famoso estudo sobre o
drama barroco alemão,
Walter Benjamin notava a predileção da literatura do século 17
por tudo aquilo que jaz em ruínas:
"O fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre
da criação barroca".
O acúmulo de reminiscências
antigas, elementos clássicos, passagens pitorescas não se apresentava unificado por meio de uma
ordem arquitetural harmoniosa,
mas surgia como uma justaposição melancólica de objetos, contemplados por um espectador
consciente dos poderes da morte.
A história, assim, era vista não da
perspectiva do prisma do progresso, mas sim sob o do efêmero,
do transitório, do funéreo.
Ninguém melhor do que um
médico, sem dúvida, para encarar
as coisas a partir de um olhar "saturniano", isto é, melancólico; e,
se esse médico é também um escritor notável pela ironia, pela
compaixão, pela aguçada sensibilidade crítica diante do absurdo
das crenças humanas -estamos
falando de Moacyr Scliar-, tende a despertar grande interesse o
livro que a Companhia das Letras
acaba de lançar.
"Saturno nos Trópicos" é um
ensaio relativamente longo, dividido em duas partes. Na primeira,
Scliar -que é colunista da Folha- reúne considerável quantidade de informações sobre a história da melancolia no Ocidente,
desde as teorias médicas da Antiguidade e os relatos sobre as tristezas de alma da tradição bíblica
até as elaborações de Robert Burton (1577-1640?) em sua "Anatomia da Melancolia". O triunfo da
morte durante os anos da Peste
Negra, as aventuras de Dom Quixote (o ressecado e errante Cavaleiro da Triste Figura), as gravuras
de Dürer, a alquimia e seus remédios, os primeiros hospícios europeus, Hamlet e Fausto, a teoria
das paixões segundo Descartes
não escapam desse abrangente e
algo trepidante retrospecto.
Na segunda parte, o autor examina algumas formas da "melancolia brasileira". Começando, como não poderia deixar de ser, pela
famosa saudade portuguesa,
Scliar se refere longamente ao ensaio de Paulo Prado, "Retrato do
Brasil", ao Jeca Tatu de Monteiro
Lobato, ao Macunaíma de Mário
de Andrade, à Macabéa de "A Hora da Estrela", romance de Clarice
Lispector.
Um Macunaíma melancólico?
Em que a célebre preguiça do herói "sem nenhum caráter" poderia confundir-se com a negatividade soturna de algum príncipe
louco do barroco alemão? O próprio Scliar rejeita essa aproximação, como também discute, com
crescente ceticismo, as teorias de
Paulo Prado a respeito das "três
raças tristes" que estariam na raiz
de nossa nacionalidade. Entram
no cortejo das associações do autor outras personagens, como o
Dom Casmurro de Machado de
Assis, o Policarpo Quaresma de
Lima Barreto, o Antônio Conselheiro de Euclides da Cunha.
E também as instituições e costumes que servem como antídoto
à melancolia. O Carnaval, a caipirinha, o açúcar, o café. A estrutura
maníaco-depressiva não é, contudo, típica dos brasileiros apenas:
Scliar nota uma "bipolaridade"
que é típica do mundo moderno,
tanto na economia quanto nos estados de ânimo, como se pode ver
em casos como a famosa febre especulativa em torno do preço das
tulipas, na Holanda do século 18.
O livro de Scliar vai se compondo, assim, de uma série de informações e referências variadas, um
pouco ao estilo de um "gabinete
de curiosidades" em que a etimologia da palavra "saudade" ombreia com um resumo de "O Alienista", de Machado de Assis, ou
com um breve relato da Revolta
da Vacina, por exemplo. Assim, o
tema da melancolia parece constituir menos o motivo para a exposição de alguma tese pessoal do
autor, e sim o ponto a partir do
qual suas idéias e conhecimentos
se desagregam em várias direções,
nem todas muito inusitadas.
Caberia perguntar se essa impessoalidade, essa estrutura centrífuga, esse espírito de inspeção
ao mesmo tempo minucioso e
distante não fazem desse livro sobre a melancolia um objeto ele
próprio melancólico, marcado
pelo acúmulo e pela fragmentação; e é como se "Saturno nos
Trópicos" se tornasse, então, um
livro tão cheio de interesse para
quem o lê quanto destituído de
ímpeto, de motivação fundamental, ao ter sido escrito.
Saturno nos Trópicos
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (253 págs.)
Lançamento: o autor lê trechos do livro
na Bienal amanhã, às 18h
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