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São Paulo, sábado, 17 de maio de 2003

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RESENHA

Tanizaki traduz embate entre tradicional e moderno

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Como ocorre em boas peças de ficção, o primeiro parágrafo costuma fornecer algumas indicações sobre a linha narrativa adotada, o tema escolhido, o tratamento estilístico aplicado. Quando não sucede de todo o assunto estar ali furtivamente sugerido, sob a capa de mera descrição de uma cena banal, como em "Há Quem Prefira Urtigas", de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um dos principais prosadores da literatura japonesa.
Misako e seu marido Kaname discutem se devem ou não sair. O pai de Misako os convidara para assistir a uma apresentação do tradicional teatro de bonecos bunraku. Misako toma banho e espera a resposta do marido. Este, incapaz de se decidir, fica atirado no tatame lendo o jornal.
Logo no início, portanto, temos em pauta dois dos grandes motivos do romance. O primeiro, explicitado no título (por sua vez retirado de um provérbio japonês: "Cada lagarta tem seu gosto; algumas preferem urtigas"), é o da escolha. Ir ou não ir ao teatro é uma escolha que pode ocultar preferências. Mas o que verdadeiramente impulsiona o enredo é a incapacidade de os personagens agirem, sua falta de talento para chegar a uma conclusão.
Misako e Kaname estão se separando. Kaname perdera interesse sexual pela mulher. Há muito tempo não mantêm relações carnais. Sob os auspícios do marido, Misako arranja um amante. No Japão da década de 1920, o divórcio não era visto com bons olhos (e muito menos o adultério, é claro), obrigando os personagens a uma extrema cautela.
A cautela promove uma espécie de paralisia. Ciente da posição frágil da mulher na sociedade japonesa da época, Kaname não quer propor uma resolução que prejudique sua mulher. No fundo, alimenta a esperança de que a situação se estenda de modo a nunca se resolver: ele e ela ficariam livres para casos extraconjugais, mantendo um casamento de fachada.
Para determinar o momento propício à comunicação do divórcio, Kaname leva em consideração inúmeros aspectos: o estado de espírito do sogro, a predisposição do amante e da família do amante em aceitar Misako, as férias do filho Hiroko e até mesmo as estações do ano. A conjugação de todos esses fatores nunca parece chegar a um bom termo.
Há outra questão corroendo o espírito de Kaname. Seu sogro tomara como amante uma concubina 30 anos mais nova, Ohisa. Ele a educa sob normas rígidas, ensinando-a a preparar pratos tradicionais, a servir o chá, a praticar a caligrafia, a tocar o "shamisen", além de obrigá-la a esfregar a pele com saquinho de farelo de arroz e fezes de rouxinol para torná-la mais branca.
Ohisa é, portanto, o oposto de Misako. Enquanto uma luta para emancipar-se, a outra se prende às convenções feudais. Por meio delas, o autor personifica o embate, na sociedade japonesa, entre as forças modernizadoras e as antigas tradições. Mas o sogro e Kaname também se opõem. Enquanto o primeiro se satisfaz com os velhos costumes, o segundo é um homem dividido.
Kaname se compraz com o jazz e traduções ocidentais, mas manifesta interesse pelo teatro de bonecos. Aceita o divórcio, mas preferiria salvar as aparências. Ele quer Misako, mas anseia por Ohisa, que, com seu rosto de boneca, à feição da prostituta Koharu do teatro de marionetes, "talvez simbolizasse a "eterna mulher" da tradição japonesa". Kaname representa o Japão cindido entre forças antagônicas, de renovação e de conservação, que o impedem pelo menos naquele momento de agir.


Há Quem Prefira Urtigas
    
Autor: Junichiro Tanizaki
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 30 (200 págs.)


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