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RESENHA
Tanizaki traduz embate entre tradicional e moderno
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Como ocorre em boas
peças de ficção, o primeiro parágrafo costuma fornecer algumas indicações sobre a linha narrativa adotada, o tema escolhido, o tratamento estilístico
aplicado. Quando não sucede de
todo o assunto estar ali furtivamente sugerido, sob a capa de
mera descrição de uma cena banal, como em "Há Quem Prefira
Urtigas", de Junichiro Tanizaki
(1886-1965), um dos principais
prosadores da literatura japonesa.
Misako e seu marido Kaname
discutem se devem ou não sair. O
pai de Misako os convidara para
assistir a uma apresentação do
tradicional teatro de bonecos
bunraku. Misako toma banho e
espera a resposta do marido. Este,
incapaz de se decidir, fica atirado
no tatame lendo o jornal.
Logo no início, portanto, temos
em pauta dois dos grandes motivos do romance. O primeiro, explicitado no título (por sua vez retirado de um provérbio japonês:
"Cada lagarta tem seu gosto; algumas preferem urtigas"), é o da escolha. Ir ou não ir ao teatro é uma
escolha que pode ocultar preferências. Mas o que verdadeiramente impulsiona o enredo é a incapacidade de os personagens
agirem, sua falta de talento para
chegar a uma conclusão.
Misako e Kaname estão se separando. Kaname perdera interesse
sexual pela mulher. Há muito
tempo não mantêm relações carnais. Sob os auspícios do marido,
Misako arranja um amante. No
Japão da década de 1920, o divórcio não era visto com bons olhos
(e muito menos o adultério, é claro), obrigando os personagens a
uma extrema cautela.
A cautela promove uma espécie
de paralisia. Ciente da posição frágil da mulher na sociedade japonesa da época, Kaname não quer
propor uma resolução que prejudique sua mulher. No fundo, alimenta a esperança de que a situação se estenda de modo a nunca
se resolver: ele e ela ficariam livres
para casos extraconjugais, mantendo um casamento de fachada.
Para determinar o momento
propício à comunicação do divórcio, Kaname leva em consideração inúmeros aspectos: o estado
de espírito do sogro, a predisposição do amante e da família do
amante em aceitar Misako, as férias do filho Hiroko e até mesmo
as estações do ano. A conjugação
de todos esses fatores nunca parece chegar a um bom termo.
Há outra questão corroendo o
espírito de Kaname. Seu sogro tomara como amante uma concubina 30 anos mais nova, Ohisa. Ele a
educa sob normas rígidas, ensinando-a a preparar pratos tradicionais, a servir o chá, a praticar a
caligrafia, a tocar o "shamisen",
além de obrigá-la a esfregar a pele
com saquinho de farelo de arroz e
fezes de rouxinol para torná-la
mais branca.
Ohisa é, portanto, o oposto de
Misako. Enquanto uma luta para
emancipar-se, a outra se prende
às convenções feudais. Por meio
delas, o autor personifica o embate, na sociedade japonesa, entre as
forças modernizadoras e as antigas tradições. Mas o sogro e Kaname também se opõem. Enquanto o primeiro se satisfaz com
os velhos costumes, o segundo é
um homem dividido.
Kaname se compraz com o jazz
e traduções ocidentais, mas manifesta interesse pelo teatro de bonecos. Aceita o divórcio, mas preferiria salvar as aparências. Ele
quer Misako, mas anseia por Ohisa, que, com seu rosto de boneca,
à feição da prostituta Koharu do
teatro de marionetes, "talvez simbolizasse a "eterna mulher" da tradição japonesa". Kaname representa o Japão cindido entre forças
antagônicas, de renovação e de
conservação, que o impedem pelo
menos naquele momento de agir.
Há Quem Prefira Urtigas
Autor: Junichiro Tanizaki
Tradutor: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 30 (200 págs.)
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