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São Paulo, sábado, 17 de maio de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"CULTURA E POLÍTICA"/ "REFLEXÕES SOBRE O EXÍLIO"

Palestino ratifica sua capacidade de defender argumentos

Said se equilibra entre erudição e ativismo

RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi com desconfiança que, há quase três décadas, os profissionais da filosofia e da política viram crescer a repercussão dos textos, em suas respectivas áreas, escritos por um certo professor de literatura comparada da Universidade Columbia (Nova York).
Houve quem o alertasse, temendo as consequências do destaque, a certa altura já em nível internacional, dos artigos políticos que ele assinava. Sua própria mãe alarmou-se: "Por que você está se metendo em coisas que não são realmente do seu ramo? Volte para a literatura".
Era tarde. Embora nunca abandonasse seu campo de formação acadêmica, o tal professor, Edward W. Said -nascido em Jerusalém no ano de 1935, educado em escolas inglesas do Cairo e que há quatro décadas integra o quadro docente daquela prestigiosa universidade americana-, começava a se tornar o que é hoje: o mais respeitado pensador militante da causa palestina.
Contudo, numa coincidência editorial, os dois últimos livros de sua autoria que chegaram às livrarias brasileiras -"Cultura e Política" e "Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios"- o revelam em ambas trincheiras: a erudita e a da ação (que tantas vezes se confundem). Dito de outra forma, trazem Said de corpo inteiro.
"Cultura e Política" dedica mais páginas ao segundo tópico, em textos, publicados entre 1998 e 2002 (inclusive na Folha), que tratam do conflito entre palestinos e israelenses. Já em "Reflexões...", cujos ensaios, que saíram em diversos veículos, cobrem sobretudo o período 1976-1998, aqueles dois grandes temas se dividem igualmente.
O que chama a atenção no trabalho de Said é a sua capacidade de defender argumentos. Nele, a arte do ensaio, do artigo opinativo -da persuasão-, encontra o equilíbrio da lucidez, baseado num irreprimível humanismo.
Assim, quando Said dispara suas críticas tanto a Israel quanto aos Estados Unidos (que aparecem, por exemplo, em "Identidade, Autoridade e Liberdade", de "Reflexões...") quanto a Yasser Arafat, de quem foi colaborador ("O Preço de Camp David", para citar um artigo de "Cultura e Política"), suas ponderações ganham uma notável credibilidade. Sua postura diante do problema pode ser resumida -sem que se confunda isso com uma visão simplista ou ingênua- nos versos finais de um poema do martinicano Aimé Césaire, não por acaso citado mais de uma vez em "Reflexões...": "E nenhuma raça possui o monopólio da beleza/da inteligência, da força, e há lugar/para todos no encontro da vitória".
Credibilidade -e erudição- constituem as características do ensaio-título de "Reflexões...". Quando Said escreve que "toda pessoa impedida de voltar para casa é um exilado", é evidente que está falando de si mesmo -e de todos os palestinos. De qualquer maneira, não se trata de um texto memorialístico. Quem está no centro dele é o conto "Amy Forster" -"talvez a mais intransigente representação do exílio jamais escrita"-, do polonês Joseph Conrad, uma especialidade do ensaísta, cujo primeiro livro estuda o autor de "Nostromo" (romance analisado em "Reflexões...").
Alguns autores, como V.S. Naipaul e Naguib Mahfouz -vencedores do Nobel de literatura- e um artigo, "O Choque das Civilizações", de Samuel Huntington ("uma farsa"), são abordados, ao mesmo tempo, em "Cultura e Política" e "Reflexões...". Nessa obra, mais diversificada, Said retoma ainda a questão do orientalismo, termo que intitula seu livro de maior influência (publicado aqui pela Companhia das Letras em 1990); comenta Vico; discorre sobre grandes pianistas -Glenn Gould à frente, claro (vale lembrar que ele toca piano e faz críticas musicais para "The Nation").
Se "Cultura e Política" contém o texto mais emocionante das duas coletâneas, "Meu Encontro com Sartre", é em "Reflexões..." que se lêem seus melhores posicionamentos sobre o papel do intelectual -e uma espécie de auto-retrato interior. No ensaio "Sobre Causas Perdidas", Said recorre à literatura para chegar ao problema "no mundo político público".
E então conclui: "A consciência da possibilidade de resistência só pode residir na vontade individual que é fortificada pelo rigor intelectual e pela firme convicção da necessidade de começar de novo, sem garantias, exceto, como diz Adorno, "a confiança presente de que o que foi pensado de modo convincente deve ser pensado em algum outro lugar e por outras pessoas (...). Dessa perspectiva, podemos perguntar se qualquer causa perdida pode, algum dia, estar realmente perdida".
É a esperança da razão, algo que não destoa de quem, há várias décadas, decidiu estender sua primeira causa, a palavra, para além da literatura -digamos, para outros territórios.


Rinaldo Gama é editor-executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles, e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/IMS, 1995, ensaio).


Cultura e Política
   
Autor: Edward W. Said
Organização: Emir Sader
Tradução: Luiz Bernardo Pericás
Editora: Boitempo Editorial
Quanto: R$ 29 (176 págs.)

Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios
   
Autor: Edward Said
Seleção: Milton Hatoum
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (352 págs.)


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