|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
Os piaçabeiros
Nas cheias de junho, o barco
do patrão desliza rio abaixo
com os piaçabeiros. Os caboclos
viajam à moda antiga da Amazônia, em embarcações apinhadas
de homens, mulheres e crianças
com todos os pertences que conseguem carregar: panela, rede, trouxa de roupa, sandália de dedo, cachorro magro, gaiola de passarinho e a espingardinha de caça.
A finalidade da viagem é levar
os trabalhadores aos locais em que
cresce selvagem a piaçaba, palmeira que fornece fibras duras,
maleáveis, boas para fazer vassouras. A época escolhida para o
transporte é quando as águas do
rio Negro transbordam pela região, criando lagos, igarapés e paranás que inundam e cortam a
floresta em todas as direções. Na
seca, com o nível do rio dez ou 12
metros abaixo, fica difícil chegar
perto dos locais de coleta e impossível transportar pela mata adentro o material colhido.
Sem nenhum título passado em
cartório, cada patrão se considera
dono de uma área à beira do rio,
que os concorrentes deverão respeitar por bem ou por mal, se desejarem viver em paz. Os 40 a 60
homens e seus familiares que o patrão transporta constituem sua
freguesia; com eles serão desembarcadas as mercadorias necessárias para o trabalho e para alimentar o grupo até as águas baixarem e subirem outra vez para
permitir de novo a navegação, em
abril ou maio. Só então a freguesia será levada de volta para suas
comunidades às margens do rio e
na periferia de Barcelos, ex-capital do Amazonas, a maior cidade
do médio rio Negro.
No barco, os piaçabeiros adquirem os mantimentos necessários
para a longa estada. Naquela distância, tudo custa mais caro, mas
podem fazer as compras sem preocupação porque o patrão é pródigo no crédito: só vai descontar a
dívida no momento de pagar pela
produção.
Num ponto mais alto da beirada
do rio ou de um igarapé mais profundo, todos os homens e os meninos graúdos se entregam à tarefa
de construir o barracão. A estrutura é de madeira; o teto e as paredes laterais, de palha. Vinte homens fortes levam uma semana
nessa construção central que abrigará das chuvas a piaçaba a ser
colhida nos meses seguintes.
Pronta a edificação central, cada família constrói sua casa ao redor dela. Geralmente, ela é armada sobre um estrado de tábuas
cortadas a serrote, fixadas sobre
troncos enterrados no chão. Elevada sobre a estrutura que lhe confere sustentação, a habitação fica
protegida das inundações em caso
de chuva torrencial. As paredes
podem ser de madeira ou improvisadas com palha de buritizeiro
trançada em desenhos geométricos.
A rotina dos trabalhadores geralmente começa às 4h, no escuro:
- Depende de ser esforçoso!
A refeição matutina é café preto
com bolacha, rosca ou farinha de
mandioca. Para já sair com energia pela floresta, a maioria não
dispensa uma talagada de aguardente daquelas que dão arrepio
no corpo na hora de engolir.
Com o terçado no cinto, saem a
pé ou de canoa para explorar as
matas atrás das piaçabas e abrir o
varador, a picada que conduz ao
piaçabal.
Antes de começar a colheita, o
piaçabeiro corta um pedaço de
pau para bater com força nas folhas da palmeira com o intuito de
espantar escorpiões, aranhas, baratas, lacraias e cobras escondidas
entre os fios. Em seguida, algumas
folhas são cortadas e dispostas no
chão para servirem de cama para
as ramagens que serão depositadas sobre elas.
Aí os feixes -ou moquecos, como são chamados- de piaçaba
são separados, cortados com o facão e colocados sobre a cama de
folhas. Bem ordenados, são amarrados com cipó bem forte, para serem transportados. Pesam de 50
kg a 100 kg, dependendo da força
do homem para carregá-lo e da
distância a ser percorrida até o
centro em que está o barracão.
São horas e horas com o feixe gigante apoiado numa "coroa" de
pano sobre a cabeça, lutando contra as dificuldades de andar pela
floresta. Quando o barracão, por
sorte, está perto ou acessível a
uma canoa com remo, é possível
fazer duas viagens por dia; caso
contrário, uma só.
A refeição do meio-dia é exemplo de frugalidade: o chibé, farinha de mandioca molhada com
água corrente, um resto de peixe
ou caça conservada no sal e frutas
como uxi, pequiá, buriti, bacaba,
patauá ou a fruta gigante que dá
no ramo da própria piaçaba.
Cada quilo de piaçaba é vendido ao patrão por R$ 2. Se estiver
molhada, o preço cai.
No final da tarde, com o moqueco na segurança do barracão, antes de se recolher para o descanso,
o piaçabeiro sai para caçar, pescar
e garantir a variedade do cardápio da família numerosa.
Em abril ou maio, quando as
águas já permitem a viagem de
volta, o patrão retorna para acertar as contas e embarcar a mercadoria. Como o preço dos mantimentos e da cachaça -que ninguém é de ferro- vendidos no
barracão são altos, o saldo que recebem é pequeno. Em caso de inadimplência, permanecem com a
família no local até saldarem a dívida, na cheia seguinte.
Apesar da vida dura, são gratos
à palmeira que lhes garante o sustento, como canta Evaristo da Silva Brás, vulgo Domingão:
"Oh, piaçaba!
Piaçaba bendita.
Deus te deu muitas barbas
Pro caboclo te aparar".
Texto Anterior: Mondo Cannes Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: "O Sarrafo" tem nova edição lançada Índice
|