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São Paulo, sábado, 17 de maio de 2003

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DRAUZIO VARELLA

Os piaçabeiros

Nas cheias de junho, o barco do patrão desliza rio abaixo com os piaçabeiros. Os caboclos viajam à moda antiga da Amazônia, em embarcações apinhadas de homens, mulheres e crianças com todos os pertences que conseguem carregar: panela, rede, trouxa de roupa, sandália de dedo, cachorro magro, gaiola de passarinho e a espingardinha de caça.
A finalidade da viagem é levar os trabalhadores aos locais em que cresce selvagem a piaçaba, palmeira que fornece fibras duras, maleáveis, boas para fazer vassouras. A época escolhida para o transporte é quando as águas do rio Negro transbordam pela região, criando lagos, igarapés e paranás que inundam e cortam a floresta em todas as direções. Na seca, com o nível do rio dez ou 12 metros abaixo, fica difícil chegar perto dos locais de coleta e impossível transportar pela mata adentro o material colhido.
Sem nenhum título passado em cartório, cada patrão se considera dono de uma área à beira do rio, que os concorrentes deverão respeitar por bem ou por mal, se desejarem viver em paz. Os 40 a 60 homens e seus familiares que o patrão transporta constituem sua freguesia; com eles serão desembarcadas as mercadorias necessárias para o trabalho e para alimentar o grupo até as águas baixarem e subirem outra vez para permitir de novo a navegação, em abril ou maio. Só então a freguesia será levada de volta para suas comunidades às margens do rio e na periferia de Barcelos, ex-capital do Amazonas, a maior cidade do médio rio Negro.
No barco, os piaçabeiros adquirem os mantimentos necessários para a longa estada. Naquela distância, tudo custa mais caro, mas podem fazer as compras sem preocupação porque o patrão é pródigo no crédito: só vai descontar a dívida no momento de pagar pela produção.
Num ponto mais alto da beirada do rio ou de um igarapé mais profundo, todos os homens e os meninos graúdos se entregam à tarefa de construir o barracão. A estrutura é de madeira; o teto e as paredes laterais, de palha. Vinte homens fortes levam uma semana nessa construção central que abrigará das chuvas a piaçaba a ser colhida nos meses seguintes.
Pronta a edificação central, cada família constrói sua casa ao redor dela. Geralmente, ela é armada sobre um estrado de tábuas cortadas a serrote, fixadas sobre troncos enterrados no chão. Elevada sobre a estrutura que lhe confere sustentação, a habitação fica protegida das inundações em caso de chuva torrencial. As paredes podem ser de madeira ou improvisadas com palha de buritizeiro trançada em desenhos geométricos.
A rotina dos trabalhadores geralmente começa às 4h, no escuro:
- Depende de ser esforçoso!
A refeição matutina é café preto com bolacha, rosca ou farinha de mandioca. Para já sair com energia pela floresta, a maioria não dispensa uma talagada de aguardente daquelas que dão arrepio no corpo na hora de engolir.
Com o terçado no cinto, saem a pé ou de canoa para explorar as matas atrás das piaçabas e abrir o varador, a picada que conduz ao piaçabal.
Antes de começar a colheita, o piaçabeiro corta um pedaço de pau para bater com força nas folhas da palmeira com o intuito de espantar escorpiões, aranhas, baratas, lacraias e cobras escondidas entre os fios. Em seguida, algumas folhas são cortadas e dispostas no chão para servirem de cama para as ramagens que serão depositadas sobre elas.
Aí os feixes -ou moquecos, como são chamados- de piaçaba são separados, cortados com o facão e colocados sobre a cama de folhas. Bem ordenados, são amarrados com cipó bem forte, para serem transportados. Pesam de 50 kg a 100 kg, dependendo da força do homem para carregá-lo e da distância a ser percorrida até o centro em que está o barracão.
São horas e horas com o feixe gigante apoiado numa "coroa" de pano sobre a cabeça, lutando contra as dificuldades de andar pela floresta. Quando o barracão, por sorte, está perto ou acessível a uma canoa com remo, é possível fazer duas viagens por dia; caso contrário, uma só.
A refeição do meio-dia é exemplo de frugalidade: o chibé, farinha de mandioca molhada com água corrente, um resto de peixe ou caça conservada no sal e frutas como uxi, pequiá, buriti, bacaba, patauá ou a fruta gigante que dá no ramo da própria piaçaba.
Cada quilo de piaçaba é vendido ao patrão por R$ 2. Se estiver molhada, o preço cai.
No final da tarde, com o moqueco na segurança do barracão, antes de se recolher para o descanso, o piaçabeiro sai para caçar, pescar e garantir a variedade do cardápio da família numerosa.
Em abril ou maio, quando as águas já permitem a viagem de volta, o patrão retorna para acertar as contas e embarcar a mercadoria. Como o preço dos mantimentos e da cachaça -que ninguém é de ferro- vendidos no barracão são altos, o saldo que recebem é pequeno. Em caso de inadimplência, permanecem com a família no local até saldarem a dívida, na cheia seguinte.
Apesar da vida dura, são gratos à palmeira que lhes garante o sustento, como canta Evaristo da Silva Brás, vulgo Domingão:
"Oh, piaçaba!
Piaçaba bendita.
Deus te deu muitas barbas
Pro caboclo te aparar".


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