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São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2003

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Fita com gravação de show-protesto histórico de Gilberto Gil, realizado em 1973 no campus da Universidade de São Paulo, é encontrada e vira CD

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29.mai.1973/Divulgação
O compositor Gilberto Gil em 1973, época em que se apresentou no campus da USP


MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

Em 1973, o estudante de geologia da USP Alexandre Vanucci Leme foi morto pela repressão política. Os universitários procuraram Gilberto Gil, que estava em São Paulo, para um show-protesto improvisado no campus.
Mais de 2.000 pessoas testemunharam um show na Escola Politécnica da USP absolutamente diferente e histórico, gravado em uma fita rolo original que, perdida por décadas, foi encontrada há dois meses. Com a anuência do compositor, o registro virará CD.
Gil, recém-chegado do exílio, tocou e falou durante três horas. Contestou suas composições antigas, mostrou os caminhos da música brasileira e sugeriu a criação de uma nova mentalidade para combater o regime.
"Soube que encontraram a fita. Estou entusiasmado. Lembro-me bem desse show. Sei que é uma referência. Havia uma sintonia enorme entre nós. Eram pessoas muito envolvidas, fui me solidarizar", diz o ministro da Cultura.
Anos antes, Caetano gritava, ao lado de Gil, sob vaias: "Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos. Vocês estão por fora! Que juventude é essa?!". Gil reatava com a esquerda, ou a esquerda tinha mudado?
"O setor musical era compulsoriamente engajado. Mas havia uma visão muito maniqueísta, a ditadura era o eixo do mal. Eu sempre estive no centro e, nesse show, me desloquei, fui injusto com minhas canções, criticando-as. Eu sabia do meu papel de referência da resistência, mas não assumia a responsabilidade", diz.
O jornalista Caio Túlio Costa prepara um livro sobre o período: "Era uma nova esquerda que nascia. Durante anos, havia uma versão resumida do show em cassete, e as pessoas se reuniam para escutá-la. Sempre se referiam ao show do Gil como um dos momentos emblemáticos, porque a cultura ganhava uma nova importância".
Ary Perez era estudante da Poli e estava no show, gravado num equipamento de rolo Akai. Foram Perez e o músico Paulo Tatit que encontraram a fita perdida.
"Fiquei com a fita depois do show. O equipamento era do Grupo de Teatro da Poli, do qual eu fazia parte. Tentei dá-la algumas vezes para profissionais da música, as pessoas aceitavam e depois devolviam, porque não tinham o aparelho. Encontrei-a numa caixa", lembra Perez.
"Os adolescentes que entravam na faculdade não estavam a fim de pegar em armas, como a geração de 68. O Gil, antenado com o que estava acontecendo, foi lá sabendo que queriam música de protesto, mas começou tocando a história da música brasileira", diz.
Paulo Tatit tratou digitalmente a fita: "Alguns trechos estavam muito bons, e outros, mastigados. Trabalhei no computador com a fita encontrada e com uma que eu tinha. A versão da fita cassete passava de mão em mão, o pessoal do Rumo ouvia".
"O Gil está um monstro no violão. Ele faz violão base como ninguém, a gente tentava tirar o violão ouvindo a fita. E o papo é revelador. A parte emocionante é quando ele, dengoso, dizia que não se lembrava de "Cálice" (de Gilberto Gil e Chico Buarque), mas um estudante tinha a letra no bolso", diz Tatit.
"O Gil era um ativista, promovia reuniões, um articulador. No final do show, ele não queria sair. O empresário dele arrastou-o pra fora, tirou meio a força. Lembro-me de o Gil falar numa linguagem cifrada. A barra estava muito pesada. Ele fazia shows em clubes, e aquilo era bem diferente", diz Geraldo Siqueira, liderança estudantil da época.


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