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CONTARDO CALLIGARIS
Guerras íntimas
Trégua de política nacional
e internacional. E volta às
guerras íntimas.
A ocasião surgiu na semana
passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor
uma mediação.
Em regra, nas brigas, a gente
age como aquele jogador que está
perdendo e dobra raivosamente
as apostas até, num último gesto,
colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança:
a perspectiva de uma catástrofe
conclusiva nos fascina com uma
falsa promessa de paz no fim do
túnel.
É banal, portanto, que, ao ser
consultado por um casal em crise,
o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo,
quando, de repente, o marido me
interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale
mais a pena?".
A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.
Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre
o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja
assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a
convivência social seriam complicadas.
Em outras palavras, é normal
que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes)
que nos inibem, que nos pedem
procrastinação e desistência ou,
simplesmente, que propõem escolhas diferentes.
A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico;
seus maiores sucessos comerciais
são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina
para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus
desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes
que aconselham a abstenção, a
espera, a prudência e a preguiça.
É irônico, aliás, que, depois de
alguns séculos de modernidade
(de dois a cinco, segundo a data
que a gente escolha para começar
a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro
assunto.
Recursos químicos à parte, o
conflito em questão produz quase
sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna,
atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em
geral) a função de nos impedir de
desejar além da conta.
São aquelas lamúrias: queria
mesmo ser trompetista, mas não
deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria
passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para
minha mulher se encontrássemos
alguém que a conhece; queria
passar o dia como uma amélia,
cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido
quer uma boneca de luxo.
É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida
urbana à geléia. Mas é mais fácil
encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo:
"Foi por causa deles".
É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria
atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu
casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.
Essas acusações, triviais numa
crise, não constituem uma boa
razão para descartar a relação.
Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um
poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar)
as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que
quis um filho logo e, "portanto,
acabou com minha carreira de
cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu
mesma quis ter um filho e que
ainda me debato com o preço que
esse desejo me custou (a carreira
de cantora lírica, que, aliás, talvez
eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro,
consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.
Em geral, quando as separações
acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo
em nossa vida, o prognóstico é
péssimo. Se o outro era a tela na
qual eu projetava impedimentos
que eu mesmo invento, é quase
garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de
minha próxima relação. Em vez
de separar-se, seria melhor se dar
o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela
parte de mim que me incomoda e
que meu parceiro me faz o favor
de encarnar.
Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?
Não é bem assim, pois acontece,
às vezes, que um dos parceiros
vista com gosto a camisa que lhe é
oferecida, ou seja, acontece que
ele ou ela achem graça em colocar
limites ao desejo do outro.
A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu
me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito
bem, é minha projeção; melhor
perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo
não me mudei para Pequim. Mas,
se meu parceiro se queixa de que
tenho o extravagante desejo de
ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.
Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o
campo do que cada um é capaz de
sonhar.
A união, como prega o ditado,
deveria fazer a força.
ccalligari@uol.com.br
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