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FERNANDO GABEIRA
Onde jogam os políticos?
Os estadistas modernos se parecem cada
vez mais com animadores de auditório
NA COPA de 70, estávamos asilados na Argélia, e alguns de
nós resolveram torcer contra o Brasil. A vitória fortaleceria a
ditadura militar. Nos primeiros lances do jogo, a emoção sepultou os
vestígios de análise política. Éramos
todos fanáticos torcedores.
Um pouco antes de sair do Brasil,
os carcereiros resolveram me colocar na solitária no dia do jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia. Calculei o resultado pela freqüência da explosão dos foguetes: 3 a 0. Foi três a
um. O gol deles me escapou no silêncio da cela.
Tenho, portanto, uma tradição de
erros quanto a resultados. No campo da política, entretanto, acho que
aos poucos vamos aprendendo alguma coisa nessa relação entre governo e seleção brasileira.
Médici foi aconselhado a fazer
embaixadas nos campos de futebol.
Seus marqueteiros achavam que isso aproximaria o governo do grande
público. Maluf chegou a dar carros
de presente e, como quase tudo dele,
o caso foi parar na polícia.
Lula foi mais autêntico, realizando peladas no fim de semana. Estiramentos, luxações e entorses acabaram obrigando-o a retirar o time de
amigos de campo. O governo estava
começando e, pelo menos teoricamente, precisava trabalhar.
Nesta Copa do Mundo, os recursos técnicos avançaram. Quebramos o monopólio estatal nas telecomunicações. Ficou mais fácil a teleconferência. Lula a experimentou
com o astronauta.
Foi um êxito, apesar de ter descido
à Terra, aposentado prematuramente e hoje estar fazendo anúncio
em TV, defendendo seu dinheirinho
como qualquer mortal sujeito à lei
da gravidade.
De um modo geral, os políticos
vestem a camisa da seleção e se deixam fotografar celebrando o gol.
Outros vão à Copa e limitam-se a desejar boa sorte.
Lula foi mais longe. Através da teleconferência assumiu, por assim
dizer, uma espécie de mediação entre os milhões de torcedores e seus
ídolos. Houve aquele mal-entendido
com Ronaldo, mas isso é apenas um
acidente de percurso. A técnica é a
mesma dos pastores que se lançam
na política: estão entre os fiéis e
Deus, são uma espécie de elo e com
isso desfrutam, ainda que indiretamente, as qualidades divinas.
O que foi mais longe nesse processo foi Berlusconi. Ele afirmou que
era o Jesus Cristo da política. Pena
que os romanos não o crucificaram
para verificar a ressurreição no terceiro dia. Um senador italiano, Mario Tronti, escreveu um livro ao deixar a política, dizendo que as forças
do mercado igualaram a todos. Não
há mais autonomia do político. Esse
é um problema, mas não é o único.
O processo político apresenta mudanças criadas pela própria democracia. No passado, por exemplo,
eram intelectuais que representavam a bancada mineira: Milton
Campos, Pedro Aleixo, Gustavo Capanema. Eram designados pelos setores dominantes. Com a explosão
urbana, o crescimento das periferias, novos atores entram em cena.
Os estadistas modernos cada vez
mais se parecem com animadores
de auditório. Ficou difícil articular
um projeto em que a política exerça
sua autonomia diante do mercado,
obtendo dele o reconhecimento de
sua justeza estratégica.
Quase impossível apresentar-se
sem um contato direto com Deus,
sem ser predestinado, sem usar chapéu de couro, tomar chimarrão ou
comer buchada de bode.
Não se fazem mais estadistas como no passado. Verdade é que o Estado perdeu importância, as próprias crises são de outra natureza.
O diálogo de Lula com Ronaldo é
apenas a expressão dessa banalidade. Lula a entendeu perfeitamente e
navega nela com absoluta confiança.
Pão e circo é uma fórmula que atravessa os tempos. Os militares tentaram, mas eram fracos no segundo
quesito. Um deles chegou a escalar
um atacante, invadindo uma área
que não lhe pertencia.
O assassinato de um zagueiro colombiano que fez um gol contra tornou-se tema de um documentário.
Crime político? Talvez fosse considerado assim num momento em
que os Estados se derretem como as
calotas polares e a emoção nacional
se concentra nas chuteiras de nossos craques.
Mas os interlocutores de Deus sabem que é difícil fugir à responsabilidade humana e perguntar, anos depois, onde ele estava quando as tragédias políticas se desencadearam.
É preciso sempre perguntar onde
estávamos nós.
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