São Paulo, sábado, 17 de junho de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Onde jogam os políticos?

Os estadistas modernos se parecem cada vez mais com animadores de auditório

NA COPA de 70, estávamos asilados na Argélia, e alguns de nós resolveram torcer contra o Brasil. A vitória fortaleceria a ditadura militar. Nos primeiros lances do jogo, a emoção sepultou os vestígios de análise política. Éramos todos fanáticos torcedores.
Um pouco antes de sair do Brasil, os carcereiros resolveram me colocar na solitária no dia do jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia. Calculei o resultado pela freqüência da explosão dos foguetes: 3 a 0. Foi três a um. O gol deles me escapou no silêncio da cela.
Tenho, portanto, uma tradição de erros quanto a resultados. No campo da política, entretanto, acho que aos poucos vamos aprendendo alguma coisa nessa relação entre governo e seleção brasileira.
Médici foi aconselhado a fazer embaixadas nos campos de futebol. Seus marqueteiros achavam que isso aproximaria o governo do grande público. Maluf chegou a dar carros de presente e, como quase tudo dele, o caso foi parar na polícia.
Lula foi mais autêntico, realizando peladas no fim de semana. Estiramentos, luxações e entorses acabaram obrigando-o a retirar o time de amigos de campo. O governo estava começando e, pelo menos teoricamente, precisava trabalhar.
Nesta Copa do Mundo, os recursos técnicos avançaram. Quebramos o monopólio estatal nas telecomunicações. Ficou mais fácil a teleconferência. Lula a experimentou com o astronauta.
Foi um êxito, apesar de ter descido à Terra, aposentado prematuramente e hoje estar fazendo anúncio em TV, defendendo seu dinheirinho como qualquer mortal sujeito à lei da gravidade.
De um modo geral, os políticos vestem a camisa da seleção e se deixam fotografar celebrando o gol. Outros vão à Copa e limitam-se a desejar boa sorte.
Lula foi mais longe. Através da teleconferência assumiu, por assim dizer, uma espécie de mediação entre os milhões de torcedores e seus ídolos. Houve aquele mal-entendido com Ronaldo, mas isso é apenas um acidente de percurso. A técnica é a mesma dos pastores que se lançam na política: estão entre os fiéis e Deus, são uma espécie de elo e com isso desfrutam, ainda que indiretamente, as qualidades divinas.
O que foi mais longe nesse processo foi Berlusconi. Ele afirmou que era o Jesus Cristo da política. Pena que os romanos não o crucificaram para verificar a ressurreição no terceiro dia. Um senador italiano, Mario Tronti, escreveu um livro ao deixar a política, dizendo que as forças do mercado igualaram a todos. Não há mais autonomia do político. Esse é um problema, mas não é o único.
O processo político apresenta mudanças criadas pela própria democracia. No passado, por exemplo, eram intelectuais que representavam a bancada mineira: Milton Campos, Pedro Aleixo, Gustavo Capanema. Eram designados pelos setores dominantes. Com a explosão urbana, o crescimento das periferias, novos atores entram em cena.
Os estadistas modernos cada vez mais se parecem com animadores de auditório. Ficou difícil articular um projeto em que a política exerça sua autonomia diante do mercado, obtendo dele o reconhecimento de sua justeza estratégica.
Quase impossível apresentar-se sem um contato direto com Deus, sem ser predestinado, sem usar chapéu de couro, tomar chimarrão ou comer buchada de bode.
Não se fazem mais estadistas como no passado. Verdade é que o Estado perdeu importância, as próprias crises são de outra natureza.
O diálogo de Lula com Ronaldo é apenas a expressão dessa banalidade. Lula a entendeu perfeitamente e navega nela com absoluta confiança. Pão e circo é uma fórmula que atravessa os tempos. Os militares tentaram, mas eram fracos no segundo quesito. Um deles chegou a escalar um atacante, invadindo uma área que não lhe pertencia.
O assassinato de um zagueiro colombiano que fez um gol contra tornou-se tema de um documentário. Crime político? Talvez fosse considerado assim num momento em que os Estados se derretem como as calotas polares e a emoção nacional se concentra nas chuteiras de nossos craques.
Mas os interlocutores de Deus sabem que é difícil fugir à responsabilidade humana e perguntar, anos depois, onde ele estava quando as tragédias políticas se desencadearam. É preciso sempre perguntar onde estávamos nós.


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