São Paulo, quinta-feira, 17 de junho de 2010

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NINA HORTA

Sem receita


Marialice era o máximo na cozinha. Rápida, eficiente, sem frescura nenhuma e sem receita


MARIALICE MARECHAL. Amizade que começou nos anos 60, na época de recém-casadas. Era a mais ativa de nós, cabelo bem loiro, muito fino, um pequeno rabo-de-cavalo, uma perua Kombi e cinco crianças para levar ao colégio, voltar, cozinhar para o marido americano, as gêmeas inapetentes, ver se o mais velho não estava passeando pelos telhados.
Tenho a foto do dia em que esse menino levado nos recebeu no colégio, em fila dupla no dia das mães. A cara dele é um estudo de desaponto. Quando entramos, os filhos deveriam lançar pétalas e mais pétalas sobre nós, e ele estava preparadíssimo e exultante, mas entendera "pedras" e se desapontou sobremaneira com as "pétalas".
Também, a mãe definia a festa das mães como aquela semana em que temos de andar com colar de grão-de-bico que guardaremos depois na caixa forrada de macarrão dourado.
Bem, Marialice morara nos Estados Unidos logo que se casou e era o máximo na cozinha. Rápida, eficiente, sem frescura nenhuma e sem receita. Umas adaptações para o Brasil que deixariam os Estados Unidos indignados. Havia a receita de Boston "baked beans" que ela transformou em "non-boston-non-baked-non-beans". Uma receita caprichada, que tem sua panelinha própria para ir ao forno, afunilada, retendo os sabores.
A versão dela era a seguinte. Pegue o feijão-mulatinho já pronto, junte mostarda, açúcar mascavo, catchup bom, bacon e deixe esquentando em fogo baixo até todos os sabores se misturarem. A gosto. Não sei se no Brasil se acostumariam com esse feijão, mas é delicioso.
O seu rosbife jamais teve segredos. Era pegar a carne, não temperar e colocar no forno médio por uma hora. Não importava o tamanho nem o tipo de carne, nem a grossura. Era uma hora. Saía rosada, quase vermelha. Sempre. Quando podia, salteava panquecas americanas para comer com mel e manteiga.
Aqui no Brasil foi ela que introduziu a salada de macarrão. Punha um pouco de tudo e o segredo era o amendoim torrado, ingrediente um tanto quanto estranho para massas. Não foi um sucesso eterno, mas durou o que dura a moda. Quem inventou essa salada foi Marcella Hazan, a conhecida autora de livros de comida italiana. Diz ela que se arrependeu muito, mas já era tarde, pegou como uma febre nos EUA.
Marialice vivia correndo com aquela Kombi recheada de crianças ou comida, exausta, às vezes. Sua avó havia caducado anos numa cama, eternamente puxando os fios da barra de uma toalha, calma, desfiando, desfiando.
Marialice sempre dizia que no auge da corrida passava pela porta do lavabo, via uma toalha e tinha uma tentação aguda que a paralisava na porta. Quase, quase parava e começava também a desfiar, enfim livre! Mas reagia e arrancava-se dali contra o voraz impulso.
Faz a melhor caipirinha de São Paulo e é uma tradutora simultânea, sensacional, especializada em medicina e japoneses. Traduz o inglês dos japoneses, é isso. Sempre comenta que muitas descobertas da ciência moderna foram fruto da sua "serendipity" que era tanto culinária quanto medicinal.
Ah, esqueci de contar qual seu maior sonho. Queria, sacudindo sua Kombi pelos mercados, recheada de carne, frango, verduras, secos e molhados, passar por acaso, distraída, por cima de uma freira do Santa Marcelina vestida de pinguim. Qualquer uma. Atribuía nossa alienação aos colégios que frequentamos. Talvez tivesse razão.

ninahorta@uol.com.br


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