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CONTARDO CALLIGARIS
Antropologia do Viagra
Vários homens têm fantasias
que vão um pouco (ou muito)
além do sexo que eles praticam.
Eles vivem uma vida sexual oficial e, em paralelo, mantêm sonhos de práticas sexuais que
lhes parecem proibidas (e às
vezes são mesmo).
Com isso, eles têm ereções
consistentes tanto em sua sexualidade oficial como nas
masturbações onde eventualmente confinam as fantasias
menos confessáveis. Mas
-quando tentam realizar essas fantasias- às vezes eles se
descobrem impotentes.
A coisa não funciona logo onde eles desejam mais sinceramente. Exemplo: uma longa
carreira de papai-mamãe
acompanhada de uma tórrida
e silenciosa fantasia sadomasoquista. Um dia, uma tentativa de realizar essa fantasia e
eis a surpresa: impotência e decepção logo na hora de viver
uma cena cuja antecipação alimentou durante anos a excitação do sujeito.
Alguns -tomados nessas dificuldades- me dizem que se
beneficiam do Viagra: graças
ao remédio eles conseguem
realizar fantasias que sempre
animaram sua vida sexual,
mas às quais seus órgãos até
então resistiam. Difícil dizer se
a coisa passa ou não de um efeito placebo.
De qualquer forma, quando
falo disso com colegas "psi" norte-americanos e europeus, eles
reagem de maneiras opostas. Os
norte-americanos se entusiasmam com a possibilidade de resolver mais um sintoma.
No entanto, o entusiasmo cai
brutalmente quando levanto o
exemplo clinicamente bem conhecido dos estupradores impotentes. Ou seja, sujeitos que fantasiam com estupro realizam
suas fantasias, mas são impotentes no momento de penetrar
suas vítimas.
Será que o Viagra os ajudaria?
É oportuno ajudá-los? De repente, os colegas norte-americanos lembram que a inibição
não é só uma patologia: ela
também preenche uma função
social. Talvez, concluem, seja
melhor esquecer a coisa. Em suma: tudo o que ajuda é bom. E o
interesse da comunidade vem
primeiro.
Os amigos europeus, ao contrário, se indignam imediatamente. A idéia de que uma intervenção química altere as
condições do exercício sexual
parece um escândalo. O exemplo dos estupradores os deixa
quase indiferentes e os leva paradoxalmente a favorecer o
Viagra: que possam estuprar
como desejam.
A sociedade se encarregará de
prendê-los, mas não é para
prender suas almas. Em suma,
alguma verdade deve ser protegida e preservada contra os excessos de boas intenções de uma
pílula e mesmo contra o interesse imediato da comunidade.
Independentemente de seus
efeitos terapêuticos, o Viagra
poderá assim passar para a história como um revelador de diferenças culturais. Como mostram as mensagens publicitárias, nos Estados Unidos, transar com Viagra não é uma vergonha.
Assim como não é vergonhoso
passar um fim-de-semana no
hotel Veneza de Las Vegas, tirar
uma foto embaixo da torre Eiffel da Disneyworld ou pendurar
na parede uma reprodução da
Mona Lisa.
O que é artificial vale tanto
quanto o que é autêntico - à
condição, naturalmente, que seja agradável. A escolha dos norte-americanos se faz sem questões ontológicas ou metafísicas,
mas segundo os prazeres e a
conveniência. É a filosofia de
Rorty aplicada ao Viagra.
Os europeus provavelmente
devem usar o Viagra tanto
quanto os norte-americanos.
Mas atormentadamente. Neste
último ano, aliás, intelectual
europeu -sobretudo se for da
área ""psi"- mal consegue dar
uma palestra ou uma entrevista
sem fazer no mínimo uma viagro-piada.
A desaprovação é constante: o
Viagra é apresentado como
uma mentira existencial, uma
espécie de monstruosa denegação freudiana pela qual curar a
impotência significa afastar o
sujeito de sua essência. Quem
nega sua impotência renega seu
próprio ser, se transforma em
um falso, como o claustro medieval reconstruído em Manhattan pelo dinheiro de Rockfeller. Perder a dita autenticidade é bem pior do que perder
umas transas. Melhor ficar impotente do que ter a sexualidade de uma pílula. Assim argumentam os europeus.
O desprezo europeu pelo artifício americano é um fenômeno
das últimas três décadas. E tem
uma explicação evidente: quanto mais a Europa se torna culturalmente uma cópia dos Estados Unidos, tanto mais sente a
necessidade de conclamar que
ela é a versão original, não a cópia colonial.
O Brasil nessa história se sai
bem. É terra americana; portanto, o artifício é bem-vindo.
Mas a confiança brasileira no
artifício nem se compara com o
cego entusiasmo norte-americano. O Brasil tem a sabedoria
que sempre vem dos fracassos.
Por outro lado, a desconfiança
não se transforma, como na Europa, em metafísica obrigatória
da infelicidade.
Ao contrário. Em suma, no
Brasil deve ser possível tomar
Viagra sem anunciar na televisão, sem proclamar o milagre e
também sem a sensação de ter
assim perdido a essência humana. Uma sabedoria que está toda no grito do vendedor de
amendoins que lança um pacote para alguém na arquibancada do estádio: "Lá vai o Viaaagraaa!".
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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