São Paulo, Quinta-feira, 17 de Junho de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Antropologia do Viagra

Vários homens têm fantasias que vão um pouco (ou muito) além do sexo que eles praticam. Eles vivem uma vida sexual oficial e, em paralelo, mantêm sonhos de práticas sexuais que lhes parecem proibidas (e às vezes são mesmo).
Com isso, eles têm ereções consistentes tanto em sua sexualidade oficial como nas masturbações onde eventualmente confinam as fantasias menos confessáveis. Mas -quando tentam realizar essas fantasias- às vezes eles se descobrem impotentes.
A coisa não funciona logo onde eles desejam mais sinceramente. Exemplo: uma longa carreira de papai-mamãe acompanhada de uma tórrida e silenciosa fantasia sadomasoquista. Um dia, uma tentativa de realizar essa fantasia e eis a surpresa: impotência e decepção logo na hora de viver uma cena cuja antecipação alimentou durante anos a excitação do sujeito.
Alguns -tomados nessas dificuldades- me dizem que se beneficiam do Viagra: graças ao remédio eles conseguem realizar fantasias que sempre animaram sua vida sexual, mas às quais seus órgãos até então resistiam. Difícil dizer se a coisa passa ou não de um efeito placebo.
De qualquer forma, quando falo disso com colegas "psi" norte-americanos e europeus, eles reagem de maneiras opostas. Os norte-americanos se entusiasmam com a possibilidade de resolver mais um sintoma.
No entanto, o entusiasmo cai brutalmente quando levanto o exemplo clinicamente bem conhecido dos estupradores impotentes. Ou seja, sujeitos que fantasiam com estupro realizam suas fantasias, mas são impotentes no momento de penetrar suas vítimas.
Será que o Viagra os ajudaria? É oportuno ajudá-los? De repente, os colegas norte-americanos lembram que a inibição não é só uma patologia: ela também preenche uma função social. Talvez, concluem, seja melhor esquecer a coisa. Em suma: tudo o que ajuda é bom. E o interesse da comunidade vem primeiro.
Os amigos europeus, ao contrário, se indignam imediatamente. A idéia de que uma intervenção química altere as condições do exercício sexual parece um escândalo. O exemplo dos estupradores os deixa quase indiferentes e os leva paradoxalmente a favorecer o Viagra: que possam estuprar como desejam.
A sociedade se encarregará de prendê-los, mas não é para prender suas almas. Em suma, alguma verdade deve ser protegida e preservada contra os excessos de boas intenções de uma pílula e mesmo contra o interesse imediato da comunidade.
Independentemente de seus efeitos terapêuticos, o Viagra poderá assim passar para a história como um revelador de diferenças culturais. Como mostram as mensagens publicitárias, nos Estados Unidos, transar com Viagra não é uma vergonha.
Assim como não é vergonhoso passar um fim-de-semana no hotel Veneza de Las Vegas, tirar uma foto embaixo da torre Eiffel da Disneyworld ou pendurar na parede uma reprodução da Mona Lisa.
O que é artificial vale tanto quanto o que é autêntico - à condição, naturalmente, que seja agradável. A escolha dos norte-americanos se faz sem questões ontológicas ou metafísicas, mas segundo os prazeres e a conveniência. É a filosofia de Rorty aplicada ao Viagra.
Os europeus provavelmente devem usar o Viagra tanto quanto os norte-americanos. Mas atormentadamente. Neste último ano, aliás, intelectual europeu -sobretudo se for da área ""psi"- mal consegue dar uma palestra ou uma entrevista sem fazer no mínimo uma viagro-piada.
A desaprovação é constante: o Viagra é apresentado como uma mentira existencial, uma espécie de monstruosa denegação freudiana pela qual curar a impotência significa afastar o sujeito de sua essência. Quem nega sua impotência renega seu próprio ser, se transforma em um falso, como o claustro medieval reconstruído em Manhattan pelo dinheiro de Rockfeller. Perder a dita autenticidade é bem pior do que perder umas transas. Melhor ficar impotente do que ter a sexualidade de uma pílula. Assim argumentam os europeus.
O desprezo europeu pelo artifício americano é um fenômeno das últimas três décadas. E tem uma explicação evidente: quanto mais a Europa se torna culturalmente uma cópia dos Estados Unidos, tanto mais sente a necessidade de conclamar que ela é a versão original, não a cópia colonial.
O Brasil nessa história se sai bem. É terra americana; portanto, o artifício é bem-vindo. Mas a confiança brasileira no artifício nem se compara com o cego entusiasmo norte-americano. O Brasil tem a sabedoria que sempre vem dos fracassos. Por outro lado, a desconfiança não se transforma, como na Europa, em metafísica obrigatória da infelicidade.
Ao contrário. Em suma, no Brasil deve ser possível tomar Viagra sem anunciar na televisão, sem proclamar o milagre e também sem a sensação de ter assim perdido a essência humana. Uma sabedoria que está toda no grito do vendedor de amendoins que lança um pacote para alguém na arquibancada do estádio: "Lá vai o Viaaagraaa!".

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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