São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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Lições do abismo

Bazuki Muhammad/Reuters
O pára-quedista australiano Steve Anderton salta do 73º andar das torres Petronas, em Kuala Lumpur, capital da Malásia


"Cult" espanhol, Vila-Matas estréia no Brasil com "A Viagem Vertical", crônica da chegada repentina da velhice

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

"A velhice? Que coisa estranha para acontecer a um garotinho como eu." É assim que o poeta americano George Oppen (1908-84) definiu o esquisito momento do homem que olha distraído no espelho e se descobre um senhor.
Isso acontece, e aconteceu com Federico Mayol. Com uma diferença. Oppen viu de fato o tempo erodir sua pele. Já o catalão de 77 anos que percebe de golpe que é um velho, um velho de passado azedo, só existe em um livro.
Mayol é a cria mais famosa do mais famoso livro de um dos principais escritores da língua espanhola, Enrique Vila-Matas.
Aos 56 anos, o escriba de Barcelona, um dos nomes mais cultuados no circuito Elizabeth Arden da literatura, faz o caminho inverso ao de seu personagem. Com mais de dez romances publicados, vários prêmios nas costas e longa colheita de elogios a "um autor insubstituível", rejuvenesce com a estréia em novo terreno.
A saga do velho Mayol, o romance "A Viagem Vertical", marca a chegada de Vila-Matas às livrarias brasileiras, com o selo Cosac & Naify, que já tem contratada outra de suas obras principais, o romance "Bartleby e Companhia", de 2002.
Para apresentar essa literatura, que o próprio escritor demarca como "o espaço máximo da liberdade", a Folha convidou o próprio Vila-Matas, que deu a seguinte entrevista por e-mail.
 

Folha - "A Viagem Vertical" é seu cartão de visitas no Brasil. Você acha que é uma boa forma de começar a conhecer seus livros?
Enrique Vila-Matas -
O segmento mais original de minha obra tem três livros e uma modesta multidão de seguidores literariamente radicais: "História Abreviada da Literatura Portátil", "Bartleby e Companhia" e "O Mal de Montano". Uma segunda "série" tem contornos mais convencionais e muitos de seus leitores vêem com receio o primeiro conjunto.
Nesse grupo mais convencional estão "Paris Não Acaba Nunca" e "A Viagem Vertical", romance que só na aparência é convencional. Na realidade, por baixo dessa crosta, a narrativa tradicional se autodinamita. Mas longe de ser um romance perigoso, o livro salva vidas de pessoas de mais idade. É, na essência, uma obra otimista.

Folha - Mayol não subscreveria o Sartre de "o inferno é o outro"?
Vila-Matas -
Quando fiz "A Viagem Vertical" ainda não conhecia um provérbio búlgaro que diz: "Não se vai ao inferno acender um cigarro. Para que, então? Para que outro te acenda um cigarro".
Isso é o que penso. E esse é, seguramente, o inferno para Mayol. Estar no inferno e outro acender seu próprio cigarro. Por isso preferiu afundar-se na Atlântida.

Folha - "Viagem" fala da perplexidade diante de uma vida já passada que, às tantas, é percebida como um grande erro. Na sua rota literária, quais foram os equívocos?
Vila-Matas -
Os livros que considero os meus melhores fiz antes do tempo. Não sei, porém, se isso pode ser considerado um erro. O fato é que me aproximei do tema do suicídio, por exemplo, antes da hora. O que penso sobre isso hoje é mais profundo do que quando fiz "Suicídios Exemplares", embora o tema esteja mais afastado de mim agora. O mesmo acontece com "Bartleby e Companhia", no qual trabalhava o tema dos que, tendo escrito livros, deixavam de fazê-lo. Quando o escrevi, em 2000, não conhecia bem o drama de não escrever. Agora a vontade de parar começou a me sondar.

Folha - O escritor Sergio Pitol definiu sua ficção como "uma viagem ao fim da noite, uma crítica radical da realidade sem regresso possível". O que pensa da descrição?
Vila-Matas -
Gosto tanto dessa frase de Pitol que a adotei como se fosse minha. O que escrevo corresponde a uma atitude que tenho diante da vida, de risco e paixão. Pretendo que meus romances sejam sempre lições de abismo.
Faço com que cada livro meu seja um salto no vazio, uma corda esticada sobre o precipício. Dessas passagens está composta minha viagem, que é sem possíveis retornos. Para que voltar?

Folha - Por que você declarou que daria entrevista em espanhol ou até tentaria se comunicar em português, mas que não falaria com jornalistas em inglês? Protesto?
Vila-Matas -
Nunca tinha visitado Londres porque não tinham me convidado e, além disso, por não saber falar inglês. Também nunca tinha ido porque toda vez que ficava próximo de viajar para lá acontecia algo muito estranho.
Pois bem, quando eu tinha 20 anos fui trabalhar na revista "Fotogramas". Pediram logo nos primeiros dias que eu traduzisse uma entrevista com Marlon Brando. Fiquei com medo que me demitissem se dissesse que não sabia inglês e inventei o texto todo. Vangloriei-me disso por anos.
E não é que agora fui a Londres pela primeira vez, com medo do que aconteceria. E, logo ao chegar ao hotel, liguei a TV e assim soube que Brando tinha morrido.

Folha - O músico e escritor Chico Buarque disse em um festival literário no Brasil que os escritores eram esquisitos. Sempre que lhes perguntavam quem eram seus prediletos repetiam "Kafka, Dostoiévski e Flaubert". Como admirador de Kafka, quais são seus outros heróis? Dostoiévski e Flaubert?
Vila-Matas -
Sou encantado pelo Dostoiévski de "Os Demônios" (assombrosamente premonitório sobre o terrorismo atual). Quanto a Flaubert, devo dizer que é fundamental para entender Kafka.

Folha - Você disse recentemente para a revista espanhola "El Cultural" que "ninguém escreve como eu, o que digo sem a mais mínima vaidade". O que sua escrita tem que ninguém pode fazer igual?
Vila-Matas -
Disse isso por entender que me perguntavam sobre supostos discípulos ou imitadores meus. A verdade é que escrever como eu só eu posso. É uma resposta lógica, ainda que brinque de algum modo com a vaidade. Minha obra começa e termina aqui, sem descendentes.

Folha - Em outra entrevista recente você fala de uma "dica" que foi dada por Raymond Queneau a Marguerite Duras e que essa lhe passou adiante: "Escreva e não faça mais nada". É assim sua vida?
Vila-Matas -
É o que digo em "Paris Não Acaba Nunca", meu livro mais recente, autobiografia dos anos em que vivi em Paris em um sótão que aluguei de Duras. De fato, ela me deu esse conselho e, como ela tinha uma personalidade muito forte, nunca me atrevi a não segui-lo. Mesmo depois da morte dela, continuei escrevendo e não fazendo mais nada. De vez em quando, vejo jogos de futebol. Às vezes, me divirto com Paula de Parma, minha mulher de toda a vida. Mas não digam nada disso, por favor, a Marguerite Duras.


A VIAGEM VERTICAL. Autor: Enrique Vila-Matas. Tradução: Laura Janina Hosiasson. Editora: Cosac & Naify. Quanto: R$ 39,50 (252 págs.).


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