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Lições do abismo
Bazuki Muhammad/Reuters
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O pára-quedista australiano Steve Anderton salta do 73º andar das torres Petronas, em Kuala Lumpur, capital da Malásia |
"Cult" espanhol, Vila-Matas estréia no Brasil com "A Viagem Vertical", crônica da chegada repentina da velhice
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
"A velhice? Que coisa estranha
para acontecer a um garotinho
como eu." É assim que o poeta
americano George Oppen (1908-84) definiu o esquisito momento
do homem que olha distraído no
espelho e se descobre um senhor.
Isso acontece, e aconteceu com
Federico Mayol. Com uma diferença. Oppen viu de fato o tempo
erodir sua pele. Já o catalão de 77
anos que percebe de golpe que é
um velho, um velho de passado
azedo, só existe em um livro.
Mayol é a cria mais famosa do
mais famoso livro de um dos
principais escritores da língua espanhola, Enrique Vila-Matas.
Aos 56 anos, o escriba de Barcelona, um dos nomes mais cultuados no circuito Elizabeth Arden
da literatura, faz o caminho inverso ao de seu personagem. Com
mais de dez romances publicados, vários prêmios nas costas e
longa colheita de elogios a "um
autor insubstituível", rejuvenesce
com a estréia em novo terreno.
A saga do velho Mayol, o romance "A Viagem Vertical", marca a chegada de Vila-Matas às livrarias brasileiras, com o selo Cosac & Naify, que já tem contratada outra de suas obras principais,
o romance "Bartleby e Companhia", de 2002.
Para apresentar essa literatura,
que o próprio escritor demarca
como "o espaço máximo da liberdade", a Folha convidou o próprio Vila-Matas, que deu a seguinte entrevista por e-mail.
Folha - "A Viagem Vertical" é seu
cartão de visitas no Brasil. Você
acha que é uma boa forma de começar a conhecer seus livros?
Enrique Vila-Matas - O segmento
mais original de minha obra tem
três livros e uma modesta multidão de seguidores literariamente
radicais: "História Abreviada da
Literatura Portátil", "Bartleby e
Companhia" e "O Mal de Montano". Uma segunda "série" tem
contornos mais convencionais e
muitos de seus leitores vêem com
receio o primeiro conjunto.
Nesse grupo mais convencional
estão "Paris Não Acaba Nunca" e
"A Viagem Vertical", romance
que só na aparência é convencional. Na realidade, por baixo dessa
crosta, a narrativa tradicional se
autodinamita. Mas longe de ser
um romance perigoso, o livro salva vidas de pessoas de mais idade.
É, na essência, uma obra otimista.
Folha - Mayol não subscreveria o
Sartre de "o inferno é o outro"?
Vila-Matas - Quando fiz "A Viagem Vertical" ainda não conhecia
um provérbio búlgaro que diz:
"Não se vai ao inferno acender
um cigarro. Para que, então? Para
que outro te acenda um cigarro".
Isso é o que penso. E esse é, seguramente, o inferno para Mayol.
Estar no inferno e outro acender
seu próprio cigarro. Por isso preferiu afundar-se na Atlântida.
Folha - "Viagem" fala da perplexidade diante de uma vida já passada que, às tantas, é percebida como um grande erro. Na sua rota literária, quais foram os equívocos?
Vila-Matas - Os livros que considero os meus melhores fiz antes
do tempo. Não sei, porém, se isso
pode ser considerado um erro. O
fato é que me aproximei do tema
do suicídio, por exemplo, antes da
hora. O que penso sobre isso hoje
é mais profundo do que quando
fiz "Suicídios Exemplares", embora o tema esteja mais afastado
de mim agora. O mesmo acontece
com "Bartleby e Companhia", no
qual trabalhava o tema dos que,
tendo escrito livros, deixavam de
fazê-lo. Quando o escrevi, em
2000, não conhecia bem o drama
de não escrever. Agora a vontade
de parar começou a me sondar.
Folha - O escritor Sergio Pitol definiu sua ficção como "uma viagem
ao fim da noite, uma crítica radical
da realidade sem regresso possível". O que pensa da descrição?
Vila-Matas - Gosto tanto dessa
frase de Pitol que a adotei como se
fosse minha. O que escrevo corresponde a uma atitude que tenho
diante da vida, de risco e paixão.
Pretendo que meus romances sejam sempre lições de abismo.
Faço com que cada livro meu
seja um salto no vazio, uma corda
esticada sobre o precipício. Dessas passagens está composta minha viagem, que é sem possíveis
retornos. Para que voltar?
Folha - Por que você declarou que
daria entrevista em espanhol ou
até tentaria se comunicar em português, mas que não falaria com
jornalistas em inglês? Protesto?
Vila-Matas - Nunca tinha visitado Londres porque não tinham
me convidado e, além disso, por
não saber falar inglês. Também
nunca tinha ido porque toda vez
que ficava próximo de viajar para
lá acontecia algo muito estranho.
Pois bem, quando eu tinha 20
anos fui trabalhar na revista "Fotogramas". Pediram logo nos primeiros dias que eu traduzisse
uma entrevista com Marlon Brando. Fiquei com medo que me demitissem se dissesse que não sabia inglês e inventei o texto todo.
Vangloriei-me disso por anos.
E não é que agora fui a Londres
pela primeira vez, com medo do
que aconteceria. E, logo ao chegar
ao hotel, liguei a TV e assim soube
que Brando tinha morrido.
Folha - O músico e escritor Chico
Buarque disse em um festival literário no Brasil que os escritores
eram esquisitos. Sempre que lhes
perguntavam quem eram seus prediletos repetiam "Kafka, Dostoiévski e Flaubert". Como admirador de Kafka, quais são seus outros
heróis? Dostoiévski e Flaubert?
Vila-Matas - Sou encantado pelo
Dostoiévski de "Os Demônios"
(assombrosamente premonitório
sobre o terrorismo atual). Quanto
a Flaubert, devo dizer que é fundamental para entender Kafka.
Folha - Você disse recentemente
para a revista espanhola "El Cultural" que "ninguém escreve como
eu, o que digo sem a mais mínima
vaidade". O que sua escrita tem
que ninguém pode fazer igual?
Vila-Matas - Disse isso por entender que me perguntavam sobre supostos discípulos ou imitadores meus. A verdade é que escrever como eu só eu posso. É
uma resposta lógica, ainda que
brinque de algum modo com a
vaidade. Minha obra começa e
termina aqui, sem descendentes.
Folha - Em outra entrevista recente você fala de uma "dica" que
foi dada por Raymond Queneau a
Marguerite Duras e que essa lhe
passou adiante: "Escreva e não faça mais nada". É assim sua vida?
Vila-Matas - É o que digo em
"Paris Não Acaba Nunca", meu livro mais recente, autobiografia
dos anos em que vivi em Paris em
um sótão que aluguei de Duras.
De fato, ela me deu esse conselho
e, como ela tinha uma personalidade muito forte, nunca me atrevi
a não segui-lo. Mesmo depois da
morte dela, continuei escrevendo
e não fazendo mais nada. De vez
em quando, vejo jogos de futebol.
Às vezes, me divirto com Paula de
Parma, minha mulher de toda a
vida. Mas não digam nada disso,
por favor, a Marguerite Duras.
A VIAGEM VERTICAL. Autor: Enrique
Vila-Matas. Tradução: Laura Janina
Hosiasson. Editora: Cosac & Naify.
Quanto: R$ 39,50 (252 págs.).
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