São Paulo, sábado, 17 de julho de 2010

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livros

CRÍTICA COLETÂNEA

Inéditos iluminam a obra de Julio Cortázar

Volume organizado pela viúva e por pesquisador catalão aponta as múltiplas facetas da carreira do artista

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Tivera a intenção de narrar algumas coisas, uma vez que havia guardado uma considerável quantidade de fichas e papeizinhos", escreve Julio Cortázar (1914-1984) no começo da obra "Livro de Manuel".
O mesmo parece se aplicar a "Papéis Inesperados" -conjunto de ficções, poemas, esboços e "autoentrevistas" que ficou guardado por 25 anos com sua viúva, Aurora Bernárdez, e cujos textos foram organizados por ela e por Carles Álvarez Garriga, estudioso catalão da obra do argentino.
Há uma grande diferença entre essa miscelânea e as obras de Cortázar editadas postumamente (mas que foram concebidas em sua fragmentária unidade pelo próprio autor). Por isso, a história da composição do livro -relatada no prefácio de Garriga- mistura elementos que lembram o célebre baú de onde saíram obras póstumas de Fernando Pessoa (em especial o "Livro do Desassossego").
Os 11 episódios que ficaram de fora de "Um Tal Lucas", as três pequenas (e divertidas) narrativas cortadas de "Histórias de Cronópios e Famas" e o capítulo excluído do "Livro de Manuel" são curiosidades que interessam mais à crítica genética (que lida com manuscritos) do que ao leitor comum.
Mas alguns contos de "Papéis Inesperados" têm existência autônoma, embora deflagrados por episódios explicitamente autobiográficos, como "O Estranho Caso do Crime da Rua Ocampo" (que tem Cortázar, Aurora e vários amigos como personagens) e "Manuscrito Achado Perto de uma Mão", melhor conto do volume, em que o protagonista descobre sua capacidade mental de atrapalhar recitais de violinistas e passa a chantageá-los (a ideia nasceu após conhecer o músico Ruggiero Ricci).
Num livro com uma imensa "marginália" textual, alguns desses inesperados manuscritos (ou datiloscritos) valem pela iluminação lateral que proporcionam.

PONTOS DE FUGA
É o caso de "Um Capítulo Suprimido de "O Jogo da Amarelinha"", texto que Cortázar escreveu em 1973 para apresentar a publicação, na "Revista Ibero-americana", de uma parte que fora cortada de seu livro.
O capítulo em si não está aqui (pois já aparece em outras edições póstumas), mas a nota desvela algo do processo criativo de Cortázar: foi o tal "capítulo suprimido" que deflagrou "O Jogo da Amarelinha", mas acabou sendo deglutido por sua estrutura desmontável: "esse capítulo inicial, verdadeiro ponto de arranque do romance como tal, "sobrava"", escreve ele.
Em seu caráter episódico, a anotação de Cortázar nos diz muito sobre essa prosa fantástica, mas cujos simulacros parecem governados por pontos de fuga que conferem racionalidade a sua lógica probabilística.
E, em "Baixo Nível", comentário de Cortázar sobre sua obsessão por metrôs, temos uma síntese dessa poética que perfura outras camadas no real: pois se "a codificação congelada do metrô favorece a irrupção do insólito", é porque "o insólito se dá aí como algo que exige a renúncia à superfície, a recodificação da vida".


PAPÉIS INESPERADOS

AUTOR Julio Cortázar
TRADUÇÃO Ari Roitman e Paulina Wacht
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO R$ 62,90 (490 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



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