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CRÍTICA COLETÂNEA
Inéditos iluminam a obra de Julio Cortázar
Volume organizado pela viúva e por pesquisador catalão aponta as múltiplas facetas da carreira do artista
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Tivera a intenção de narrar algumas coisas, uma vez
que havia guardado uma
considerável quantidade de
fichas e papeizinhos", escreve Julio Cortázar (1914-1984)
no começo da obra "Livro de
Manuel".
O mesmo parece se aplicar
a "Papéis Inesperados"
-conjunto de ficções, poemas, esboços e "autoentrevistas" que ficou guardado
por 25 anos com sua viúva,
Aurora Bernárdez, e cujos
textos foram organizados por
ela e por Carles Álvarez Garriga, estudioso catalão da obra
do argentino.
Há uma grande diferença
entre essa miscelânea e as
obras de Cortázar editadas
postumamente (mas que foram concebidas em sua fragmentária unidade pelo próprio autor).
Por isso, a história da composição do livro -relatada
no prefácio de Garriga- mistura elementos que lembram
o célebre baú de onde saíram
obras póstumas de Fernando
Pessoa (em especial o "Livro
do Desassossego").
Os 11 episódios que ficaram de fora de "Um Tal Lucas", as três pequenas (e divertidas) narrativas cortadas
de "Histórias de Cronópios e
Famas" e o capítulo excluído
do "Livro de Manuel" são curiosidades que interessam
mais à crítica genética (que
lida com manuscritos) do
que ao leitor comum.
Mas alguns contos de "Papéis Inesperados" têm existência autônoma, embora
deflagrados por episódios
explicitamente autobiográficos, como "O Estranho Caso
do Crime da Rua Ocampo"
(que tem Cortázar, Aurora e
vários amigos como personagens) e "Manuscrito Achado
Perto de uma Mão", melhor
conto do volume, em que o
protagonista descobre sua
capacidade mental de atrapalhar recitais de violinistas
e passa a chantageá-los (a
ideia nasceu após conhecer o
músico Ruggiero Ricci).
Num livro com uma imensa "marginália" textual, alguns desses inesperados manuscritos (ou datiloscritos)
valem pela iluminação lateral que proporcionam.
PONTOS DE FUGA
É o caso de "Um Capítulo
Suprimido de "O Jogo da
Amarelinha"", texto que Cortázar escreveu em 1973 para
apresentar a publicação, na
"Revista Ibero-americana",
de uma parte que fora cortada de seu livro.
O capítulo em si não está
aqui (pois já aparece em outras edições póstumas), mas
a nota desvela algo do processo criativo de Cortázar: foi
o tal "capítulo suprimido"
que deflagrou "O Jogo da
Amarelinha", mas acabou
sendo deglutido por sua estrutura desmontável: "esse
capítulo inicial, verdadeiro
ponto de arranque do romance como tal, "sobrava"", escreve ele.
Em seu caráter episódico,
a anotação de Cortázar nos
diz muito sobre essa prosa
fantástica, mas cujos simulacros parecem governados
por pontos de fuga que conferem racionalidade a sua lógica probabilística.
E, em "Baixo Nível", comentário de Cortázar sobre
sua obsessão por metrôs, temos uma síntese dessa poética que perfura outras camadas no real: pois se "a codificação congelada do metrô favorece a irrupção do insólito", é porque "o insólito se dá
aí como algo que exige a renúncia à superfície, a recodificação da vida".
PAPÉIS INESPERADOS
AUTOR Julio Cortázar
TRADUÇÃO Ari Roitman e Paulina
Wacht
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO R$ 62,90 (490 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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