São Paulo, sexta, 17 de julho de 1998

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"Calabar" tem lirismo e sensualidade nos versos

da Reportagem Local

A edição de "Calabar, o Elogio da Traição", que a Civilização Brasileira lança agora como parte de um projeto de publicar a obra de Chico Buarque de Hollanda, traz uma antiga declaração do autor. "Meu trabalho sempre foi muito ligado ao teatro."
Muito ligado, de fato. Desde a primeira canção, considerada pelo próprio Chico Buarque a sua estréia na música, "Tem Mais Samba", composta para "Balanço de Orfeu" em 1964, até a entrada dos anos 90, foram 18 espetáculos.
Compôs para musicais propriamente, para tragédias, dramas e comédias, para infantis, dança-teatro, auto de natal. Quase sempre por encomenda, como é próprio do teatro.
Grande parte de sua discografia é derivada de trabalhos compostos para o palco. Adolescente, já compunha pequenas "operetas" com a irmã e cantora Miúcha, para apresentar em casa -como ator.
É um grande compositor do teatro, um poeta do palco, mais do que dramaturgo. Não é diferente nisso de um contemporâneo seu, o maior compositor americano de musicais nestas últimas três décadas, Stephen Sondheim.
Em "Calabar" e nas demais que escreveu além de compor ("Roda Viva", "Gota D'Água", "Ópera do Malandro"), é nos diálogos cantados que se vislumbra a grande arte de Chico Buarque. O lirismo, o erotismo, as rimas ricas.
Também as melodias simples, límpidas. No dizer de Décio de Almeida Prado, em crítica de 65 sobre "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, que Chico Buarque musicou: "A música de Chico Buarque de Hollanda, música de teatro, de imediata comunicabilidade".
"Calabar" se inspira na "traição" de Domingos Fernandes Calabar, um mulato que lutou ao lado dos portugueses contra a invasão holandesa de 1630/45 e depois mudou de lado.
A peça parte daí, mas se ocupa é de Bárbara, que amou e hoje chora Calabar, já morto. Busca o amante nos braços do traidor do próprio Calabar, Sebastião do Souto, e da prostituta Anna de Amsterdã.
Bárbara esforça-se por entrar, também ela, no mundo da traição de Calabar. Sua sensualidade e paixão, neste ambiente propositadamente sem contornos nacionais e morais claros, é que fazem de "Calabar" uma boa peça.
Uma canção, ou melhor, um diálogo musical é especialmente belo. Bárbara canta para Anna como se esta, no seu devaneio, fosse Calabar, e Anna responde, apaixonada, ela sim, por Bárbara -em meio a rimas como vadia/hemorragia e cruas/duas.
Mas não tem só o lirismo e a sensualidade dos versos de Chico Buarque, a peça. "Calabar" tem uma prosa em pastiche brechtiano, sobretudo no economicismo que envolve as diferenças das colonizações holandesa e portuguesa.
Além de, como escreveu um dia Caetano Veloso, querer falar "pelas frestas", contra a censura, o regime militar, o que já soa fora de lugar, anacrônico. (NS)



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