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ARTIGO
Cocaína-champanhe-caviar
JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
especial para a Folha
"Roda Viva". Musical em roda
eternamente viva. Coros protagonizando certo, linhas tortas, tirando da reta os "chorus on line"
americanos.
Envolvimentos, abraços, passes,
sacudimentos, vertigens, rodas de
samba, bailes de Carnaval de rua,
bárbaras esfregações, brigas, passeatas do Carnaval de antigamente, da Bahia nua de Carlinhos
Brown de hoje.
Esse eterno transtorno aconteceu no teatro brasileiro quando
um poeta se deu pra comer. O poeta Chico Buarque deu seu ídolo, o
que seus olhos jade-azuis anteviram seu fígado experimentara.
Deu sua carne de poeta no auge da
popularidade pra entregar a máquina de fabricação de imagens,
de santinhos da jovem guarda, dos
punhos cerrados do teatro de protesto, da arreganhação do power
flower, de Deus, da pátria, da família, da propriedade, num labiríntico roteiro profético da passagem da ditadura militar para a telefinanceira.
Esse jogo plugou as antenas,
chamou a pulsão teatral forte da
juventude 68, que com estas letras
e músicas tomou, ocupou o teatro
como outros tomavam fábricas,
fazendas, universidades. Mas era
uma ocupação musical, portanto
total, em pulsão permanente de
dança, canto, histrionismo, ação
direta coletiva, coral, voraz, milenarmente faminta e libidinosa.
No "Transe da Terra", nos 60,
emergiram pulsões bárbaras de vida, que em erupção explodiram os
palcos e platéias e tomaram -numa ressurreição inesperada de
Dionísio- o território do teatro já
cultivado por Nelson Rodrigues,
Plínio Marcos, TBC, Arena, Oficina.
Desde 22, os movimentos de
subversão, ruptura social, foram
sinônimos crônicos de um renascimento artístico brasileiro mundial. No máximo da temperatura
de explosão do tônus da mudança
desses movimentos, o Império
Americano detonou um golpe específico em cima da pulsão teatral,
do poder do movimento social
-quando se encontra com o movimento da arte de viver que quer
mais, o teatro de catarse.
O punhado de pessoas que Artaud previa e pedia pro teatro ressuscitar no século 20 aconteceu
aqui em São Paulo, no Trópico de
Capricórnio. Se encontrou e ocupou, como Heliogabalo ocupou
Roma, o território já cultivado do
teatro para a anarquia coroada.
A belíssima Marieta Severo, o talento total de Marília Pêra, nossasenhoravam. O gigante deus Pereio debochava no improviso. Antônio Pedro e Flávio Santiago, Anjo-Demoniavam com um poder
Chacrinesco. As belezas de Heleno
Prestes, Rodrigo Santiago, Paulo
Augusto encarnavam a beleza do
ídolo Chico, que hipnotizava até a
censura. Era um time de protagonização contracenando um coro
de poder nunca visto.
O extraordinário Xamã Samuka
corifeava talentos de todas as revoluções magnéticas imagináveis
e inimagináveis, num corpo só.
Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel
emergiram com sua grandeza
comparável à de todos os que submergiram. O diretor de cena era o
general Jonny Howard, depois cineasta. O produtor-executivo Luis
Fernando Guimarães era o líder
Cohmbendito. Flávio Império fez
figurinos e cenários rituais de Vudu luxuoso. Dulce Maia, com o
mesmo Fusca que fazia a produção da peça, fazia também suas
ações políticas nos Banks.
Estávamos apaixonados por nós
mesmos e chamávamos a companhia de "Cu" -Companhia Utópica.
Rompiam-se as barreiras entre
palco e platéia, música e teatro,
teatro e multidão, teatro e mídia.
O debate na TV Tupi invadida pela
classe teatral teve quase 100% de
audiência. O teatro larvou o fogo
do seu destino no Brasil, transbordou no social, animou as passeatas, as vidas, as decisões pessoais e
coletivas, incendiou os espaços.
Mais do que um espetáculo teatral, "Roda Viva" foi um acontecimento teatral-político, uma virada do teatro pra uma religação
com manifestações dos catimbós
orgiásticos das multidões brasileiras. A loucura da paixão do futebol
encontrava a energia irmã da catarse social, que é o teatro quando
aparece como um ato público.
Nem as religiões nem a política
nem o futebol podem fazer o que o
teatro faz. Quando acontece no
plano social, produz a catarse coletiva do poder -e sem ela não há
possibilidade de os povos erguerem a cabeça.
É uma atividade que a vida pede
e vem desta paixão pelo "impossível", que passa pelo toque nos tabus, que seguram os costumes vuduzados.
Chico tocou no tabu do virtual
controlador de tabus. Como diretor eu fatiei a carne, a encarnação
do corpo necessário. Chico mesmo bancou a produção da peça,
generosamente. Nunca participei
de uma produção assim: tudo em
cima. Montamos em 16 dias: banda completa, Jura Otero e Klaus
Viana dando forma ao caos que
dançava por si em ensaios abertos,
festas públicas como ensaios de
escolas de samba. Mike Jagger e
Miriam Makeeba foram participar, porque todo mundo que ia ou
se ligava ou saía xingando.
"Roda Viva" criou a visão de
um time de jogadores de teatro perigoso demais para a ordem liberal. E a implantação dessa ordem
estava na fase militar. Para a sua
imposição era necessário censurar
o teatro e massacrar fisicamente,
sacrificar o punhado de pessoas de
"Roda Viva" -por meio da ação
denominada pela logística militar
"Operação Quadrado Morto".
Essa ação somada a outra em Porto Alegre impôs a ordem do teatro
dominado, da novela, dos bons
costumes da vida privada.
Hoje a TV explode "Torres de
Babel" para sepultar totens, a fim
de que virem tabus para sempre.
Mas "Roda Viva" está nas ações
dos povos do mundo, contra os
controladores da ordem financeira global. As ações de rebelião
contra a ordem liberal contagiam
as forças da vida na arte como poder. O movimento mundial anti-ordem-liberal liberta a arte da
escravidão da "tela branca", de
"Art" para executivos de papel
cuchê.
É matéria de rodagem viva de
energia catártica, pólvoras de fugas possíveis de um destino medíocre, de uma idéia única de humanidade.
Há 30 anos encontrei Cacilda
Becker e Ruth Escobar defendendo ardorosamente "Roda Viva".
Cacilda proclamava: "Todos os
teatros são meus teatros". Combinamos juntar nossos teatros, o de
"Roda Viva" e o que ela vinha
tornando poderoso nos 47 anos de
sua vida. Decidimos fazer "A Gaivota". Roda Viva Oficina = Teatro
de Treplev e Teatro Cacilda Becker
= Arkadina. Juntos numa potencialização do teatro brasileiro que
encontrava o seu lugar social na
multidão. Fomos derrotados militarmente. Recuamos.
Mas 30 anos de "Roda Viva"
me encontram inspirado a realizar
esse reencontro, que parece impossível nesta primavera de 98.
Silvinha Werneck, ninfa de 17
anos que fazia parte da segurança
do espetáculo contra os ataques do
CCC com um pedaço de pau, e Samuka, o corifeu do coro, são minhas musas inspiradoras neste
trabalho de arte política: trazer a
eternidade presente de "Roda Viva" como eterno transtorno de
um teatro brasileiro de estádio de
êxtase, graça e potência.
"Roda Viva" ainda não foi estudada esteticamente, antropológica ou antropofagicamente. Só se
fala no ataque do CCC. O mistério
da matéria que foi atacada permanece desconhecido, mas está presente no coração do desejo musical, dançado, apaixonado de encontrar o avesso, a saída do estado
de coma, de em-cantamento,
prostração.
Sabe a cara paralisada da torcida
brasileira durante a final na França? A expressão vuduzada da seleção, domingo, durante e depois da
derrota? "Roda Viva" é a busca
do avesso desse estado. É o estado
de gol. No teatro, esse estado vibrou (há 30 anos). Na nossa vida,
pode explodir quando menos se
espera. O MST já ocupa a Terra.
Nossas paixões sempre querem
aTerrar de novo. Acho que esta
data histórica se comemora preparando a possibilidade eterna da
primavera que está chegando, e o
CCC já virou cocaína-champanhe-caviar.
José Celso Martinez Corrêa é diretor de teatro e
dirigiu "Roda Viva" em 1968
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