São Paulo, sexta, 17 de julho de 1998

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ARTIGO
Cocaína-champanhe-caviar

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
especial para a Folha

"Roda Viva". Musical em roda eternamente viva. Coros protagonizando certo, linhas tortas, tirando da reta os "chorus on line" americanos.
Envolvimentos, abraços, passes, sacudimentos, vertigens, rodas de samba, bailes de Carnaval de rua, bárbaras esfregações, brigas, passeatas do Carnaval de antigamente, da Bahia nua de Carlinhos Brown de hoje.
Esse eterno transtorno aconteceu no teatro brasileiro quando um poeta se deu pra comer. O poeta Chico Buarque deu seu ídolo, o que seus olhos jade-azuis anteviram seu fígado experimentara. Deu sua carne de poeta no auge da popularidade pra entregar a máquina de fabricação de imagens, de santinhos da jovem guarda, dos punhos cerrados do teatro de protesto, da arreganhação do power flower, de Deus, da pátria, da família, da propriedade, num labiríntico roteiro profético da passagem da ditadura militar para a telefinanceira.
Esse jogo plugou as antenas, chamou a pulsão teatral forte da juventude 68, que com estas letras e músicas tomou, ocupou o teatro como outros tomavam fábricas, fazendas, universidades. Mas era uma ocupação musical, portanto total, em pulsão permanente de dança, canto, histrionismo, ação direta coletiva, coral, voraz, milenarmente faminta e libidinosa.
No "Transe da Terra", nos 60, emergiram pulsões bárbaras de vida, que em erupção explodiram os palcos e platéias e tomaram -numa ressurreição inesperada de Dionísio- o território do teatro já cultivado por Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, TBC, Arena, Oficina.
Desde 22, os movimentos de subversão, ruptura social, foram sinônimos crônicos de um renascimento artístico brasileiro mundial. No máximo da temperatura de explosão do tônus da mudança desses movimentos, o Império Americano detonou um golpe específico em cima da pulsão teatral, do poder do movimento social -quando se encontra com o movimento da arte de viver que quer mais, o teatro de catarse.
O punhado de pessoas que Artaud previa e pedia pro teatro ressuscitar no século 20 aconteceu aqui em São Paulo, no Trópico de Capricórnio. Se encontrou e ocupou, como Heliogabalo ocupou Roma, o território já cultivado do teatro para a anarquia coroada.
A belíssima Marieta Severo, o talento total de Marília Pêra, nossasenhoravam. O gigante deus Pereio debochava no improviso. Antônio Pedro e Flávio Santiago, Anjo-Demoniavam com um poder Chacrinesco. As belezas de Heleno Prestes, Rodrigo Santiago, Paulo Augusto encarnavam a beleza do ídolo Chico, que hipnotizava até a censura. Era um time de protagonização contracenando um coro de poder nunca visto.
O extraordinário Xamã Samuka corifeava talentos de todas as revoluções magnéticas imagináveis e inimagináveis, num corpo só.
Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel emergiram com sua grandeza comparável à de todos os que submergiram. O diretor de cena era o general Jonny Howard, depois cineasta. O produtor-executivo Luis Fernando Guimarães era o líder Cohmbendito. Flávio Império fez figurinos e cenários rituais de Vudu luxuoso. Dulce Maia, com o mesmo Fusca que fazia a produção da peça, fazia também suas ações políticas nos Banks.
Estávamos apaixonados por nós mesmos e chamávamos a companhia de "Cu" -Companhia Utópica.
Rompiam-se as barreiras entre palco e platéia, música e teatro, teatro e multidão, teatro e mídia. O debate na TV Tupi invadida pela classe teatral teve quase 100% de audiência. O teatro larvou o fogo do seu destino no Brasil, transbordou no social, animou as passeatas, as vidas, as decisões pessoais e coletivas, incendiou os espaços.
Mais do que um espetáculo teatral, "Roda Viva" foi um acontecimento teatral-político, uma virada do teatro pra uma religação com manifestações dos catimbós orgiásticos das multidões brasileiras. A loucura da paixão do futebol encontrava a energia irmã da catarse social, que é o teatro quando aparece como um ato público.
Nem as religiões nem a política nem o futebol podem fazer o que o teatro faz. Quando acontece no plano social, produz a catarse coletiva do poder -e sem ela não há possibilidade de os povos erguerem a cabeça.
É uma atividade que a vida pede e vem desta paixão pelo "impossível", que passa pelo toque nos tabus, que seguram os costumes vuduzados.
Chico tocou no tabu do virtual controlador de tabus. Como diretor eu fatiei a carne, a encarnação do corpo necessário. Chico mesmo bancou a produção da peça, generosamente. Nunca participei de uma produção assim: tudo em cima. Montamos em 16 dias: banda completa, Jura Otero e Klaus Viana dando forma ao caos que dançava por si em ensaios abertos, festas públicas como ensaios de escolas de samba. Mike Jagger e Miriam Makeeba foram participar, porque todo mundo que ia ou se ligava ou saía xingando.
"Roda Viva" criou a visão de um time de jogadores de teatro perigoso demais para a ordem liberal. E a implantação dessa ordem estava na fase militar. Para a sua imposição era necessário censurar o teatro e massacrar fisicamente, sacrificar o punhado de pessoas de "Roda Viva" -por meio da ação denominada pela logística militar "Operação Quadrado Morto". Essa ação somada a outra em Porto Alegre impôs a ordem do teatro dominado, da novela, dos bons costumes da vida privada.
Hoje a TV explode "Torres de Babel" para sepultar totens, a fim de que virem tabus para sempre. Mas "Roda Viva" está nas ações dos povos do mundo, contra os controladores da ordem financeira global. As ações de rebelião contra a ordem liberal contagiam as forças da vida na arte como poder. O movimento mundial anti-ordem-liberal liberta a arte da escravidão da "tela branca", de "Art" para executivos de papel cuchê.
É matéria de rodagem viva de energia catártica, pólvoras de fugas possíveis de um destino medíocre, de uma idéia única de humanidade.
Há 30 anos encontrei Cacilda Becker e Ruth Escobar defendendo ardorosamente "Roda Viva". Cacilda proclamava: "Todos os teatros são meus teatros". Combinamos juntar nossos teatros, o de "Roda Viva" e o que ela vinha tornando poderoso nos 47 anos de sua vida. Decidimos fazer "A Gaivota". Roda Viva Oficina = Teatro de Treplev e Teatro Cacilda Becker = Arkadina. Juntos numa potencialização do teatro brasileiro que encontrava o seu lugar social na multidão. Fomos derrotados militarmente. Recuamos.
Mas 30 anos de "Roda Viva" me encontram inspirado a realizar esse reencontro, que parece impossível nesta primavera de 98.
Silvinha Werneck, ninfa de 17 anos que fazia parte da segurança do espetáculo contra os ataques do CCC com um pedaço de pau, e Samuka, o corifeu do coro, são minhas musas inspiradoras neste trabalho de arte política: trazer a eternidade presente de "Roda Viva" como eterno transtorno de um teatro brasileiro de estádio de êxtase, graça e potência.
"Roda Viva" ainda não foi estudada esteticamente, antropológica ou antropofagicamente. Só se fala no ataque do CCC. O mistério da matéria que foi atacada permanece desconhecido, mas está presente no coração do desejo musical, dançado, apaixonado de encontrar o avesso, a saída do estado de coma, de em-cantamento, prostração.
Sabe a cara paralisada da torcida brasileira durante a final na França? A expressão vuduzada da seleção, domingo, durante e depois da derrota? "Roda Viva" é a busca do avesso desse estado. É o estado de gol. No teatro, esse estado vibrou (há 30 anos). Na nossa vida, pode explodir quando menos se espera. O MST já ocupa a Terra. Nossas paixões sempre querem aTerrar de novo. Acho que esta data histórica se comemora preparando a possibilidade eterna da primavera que está chegando, e o CCC já virou cocaína-champanhe-caviar.


José Celso Martinez Corrêa é diretor de teatro e dirigiu "Roda Viva" em 1968


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