São Paulo, Sábado, 17 de Julho de 1999
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500 ANOS
Greca recebe "hino" de Chitãozinho e Xororó
"Chacrinha" do Planalto exalta neocaipirismo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

O ministro Rafael Greca (Esporte e Turismo) está se transformando numa espécie de Chacrinha do governo Fernando Henrique Cardoso. É assim que é visto e chamado em conversas reservadas por muitos colegas na Esplanada dos Ministérios. Ao contrário, porém, do que pregava e fazia Abelardo Barbosa, Greca se comunica e se trumbica.
A mais recente confusão armada pelo ministro chama-se "500 Anos". Trata-se de uma música encomendada no início de fevereiro à dupla neo-sertaneja Chitãozinho e Xororó (leia a letra abaixo), apresentada na semana passada como "hino" para embalar as comemorações oficiais quinto centenário do Descobrimento. Consta que Greca chorou ao ouvi-la pela primeira vez, ao telefone.
Contrariados, os demais membros do comitê interministerial responsável pela organização da comemoração dos 500 anos (Francisco Weffort, da Cultura, Luiz Felipe Lampreia, das Relações Exteriores, e Andrea Matarazzo, da Comunicação Social) apenas silenciaram. Houve gritaria, mas vinda do meio artístico, que ridicularizou a iniciativa.
Só com sua cria, Greca tratou de defendê-la a seu estilo. Primeiro afirmou que "mais vale uma música de Chitãozinho do que um ciclo inteiro de conferências sobre o assunto". A seguir, antes de sair em licença médica e se isolar ao longo da semana num spa do Paraná, seu Estado, recuou, deixando com assessores o recado de que o "hino" seria só uma música entre muitas que o ministério encomendou e espera receber.
A emenda, no entanto, pode sair pior que o soneto neocaipira arquitetado em Brasília. A dupla Tinoco e Tinoquinho foi à TV esta semana apresentar seu próprio "hino". Antonio Carlos e Jocafi também já teriam enviado a sua música a Greca e, segundo uma de suas assessoras, até o grupo pop Skank teria manifestado interesse em compor sua música.
Planejada inicialmente pelo Itamaraty para ser uma comemoração à sua imagem, discreta e de teor reflexivo, como aliás costuma agradar aos tucanos, a festa dos 500 anos vai se folclorizando de modo estridente e desandando antes mesmo de começar. A polêmica foi instalada. E ultrapassou os gabinetes de Brasília.
Segundo o historiador e crítico José Ramos Tinhorão, famoso pela defesa da trincheira nacionalista na MPB nos anos 60, toda essa confusão se caracteriza "por níveis superpostos de bobagem".
Por um lado, diz ele, "há preconceito de classe na condenação dos neo-sertanejos. A porcaria deles faz sucesso e pelo menos a matéria-prima é nacional. Os roqueiros que protestam no fundo fazem a mesma droga facilitária e com matéria-prima importada".
Por outro lado, ironiza o crítico, autor da "História Social da Música Brasileira" (Editora 34, 98), "não há por que ficar incomodado; os militares também pediram marchinhas ufanistas para Don e Ravel (autores de "Eu Te Amo, Meu Brasil"), e o Greca é muito apropriado para essa função de animador cultural. Tem até o "physique du rôle", gordinho, engraçado, falante. Eu prefiro um brincalhão a uma múmia séria, como o Weffort" -provoca.
Procurado diariamente pela Folha desde segunda-feira, Greca avisou na quinta-feira por meio de assessores quer não iria falar sobre o assunto. Respondendo interinamente pela pasta, a secretária-executiva de Greca, Teresa Castro, braço direito do ministro na política há 11 anos, afasta a comparação com os militares.
"Uma das tragédias desse período foi que nos roubou a possibilidade de sermos ufanistas sem culpa. Acho que hoje não precisamos mais de psiquiatra. É preciso despertar a auto-estima desse povo, mostrar que temos glórias importantes, o que não significa que não temos problemas para resolver", diz a ministra-interina, rebatendo as críticas por Greca.
É exatamente a discussão dos problemas do Brasil que o escritor e antropólogo Antonio Risério vê abandonada pela atitude do governo. "Não tenho nada contra Chitãozinho e Xororó, mas não discuto nesses termos. Esse governo não tem política para a cultura; o Fernando Henrique transferiu a reflexão sobre os 500 anos a um imbecil, quando seria o momento de discutir qual é o nosso projeto de civilização", afirma.
"Vocês em São Paulo chamam de penetra o sujeito que vai a uma festa sem conhecer o aniversariante. É o caso do Greca, ele não conhece o Brasil, é um marketeiro. Em termos baianos, que são os meus, digo que ele está mais para Nizan Guanaes do que para Glauber Rocha", completa Risério.
Igualmente furioso, o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcelos (que prefere ser identificado como "professor de folclore" da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, por considerar que Fernando Henrique "avacalhou" sua profissão), acusa o governo de aproveitar os 500 anos para veicular "uma visão pândega e espetaculosa da cultura".
Segundo ele, a música de Chitãozinho e Xororó "não tem nada a ver com folclore; é uma miscelânea de John Travolta com falsificação paraguaia, uma expressão baixa de populismo".
Vasconcelos vê na opção de Greca por Chitãozinho e Xororó uma identificação com a cultura do vencedor: "quem vende, quem tem dinheiro, quem está no mercado sempre tem razão, essa é a mensagem do governo ao país".
O acorde dissonante no debate parte do músico Luiz Tatit, ex-líder do grupo Rumo e professor de linguística na USP. Manifestando compreensão pelo gênero acolhido por Greca, Tatit diz que "a música sertaneja acabou dando conta de um conteúdo afetivo, passional, uma solicitação recorrente na cultura brasileira".
Segundo ele, "essa música, com suas melodias vocálicas lentas, traduz uma busca por afeto que pertence à dicção da cultura musical brasileira. No caso, trata-se da necessidade de cantar o amor à pátria, mesmo que a gente não goste". É o amor, como diriam Zezé Di Camargo e Luciano.


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