São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Da necessidade de ressuscitar os duelos

Passaram de moda, mas não deveriam ter passado. Bem diferente do rapé, que também passou de moda, mas era uma porcaria. Até hoje não entendi o tipo de prazer que o rapé provocava. Devido a uma alergia antiga, espirro todos os dias e não gosto, embora me garantam que espirrar é sinal de saúde, uma vez que os moribundos nunca espirram. Mas provocar o espirro ou qualquer irritação no nariz deve ser masoquismo e porcaria mesmo.
Os duelos não. Eram românticos e necessários. Eles podiam resolver todas as questões, as pessoais e as coletivas, as da humanidade em geral. O homem primitivo tinha isso de sábio. Quando surgia um problema entre duas facções, entre duas tribos, dava-se um pau para cada chefe e elas decidiam na porrada quem tinha razão. E, tendo ou não tendo razão, esclareciam os fatos de forma radical e inquestionável.
Lembro que, durante a guerra das Malvinas, uma estupidez a mais da raça humana, publiquei em "Fatos&Fotos" uma página que me custou centenas de cartas de protesto. Peguei um inglês ilustre, Macmillan, ex-primeiro-ministro da Inglaterra, e Jorge Luiz Borges, escritor e emblema da civilização portenha. Os dois tinham em comum a velhice, a cegueira e a bengala.
Sugeri que, em vez de bombardeiros, navios, tanques, canhões e tropas de gente inocente, os dois próceres decidissem a questão na base de bengaladas. Nada mais "belle époque" e civilizado. Vidas seriam poupadas, dinheiro não seria gasto com as complexas movimentações guerreiras.
Além de ex-primeiro-ministro, Macmillan era dono de uma editora famosa, homem de cultura, tal como Borges. Os dois já haviam adentrado a casa dos 80 anos e, sendo cegos, não veriam sangue, se acaso surgisse sangue no duelo entre os dois. Ao vencedor seriam dadas as batatas, como sempre.
No plano da ficção, gosto de dois duelos contados por Eça de Queiroz, um deles em "Os Maias", o outro em "O Conde de Abranhos". Nenhum dos dois se realizou. O primeiro foi evitado porque o desafiado escreveu uma carta abominável ao desafiador. Dâmaso Salcede declarou-se bêbado por ocasião do agravo que cometera contra João da Ega.
No segundo, Alipio Abranhos, após a noite passada em cólicas, sem sair da latrina, denunciou anonimamente o duelo à polícia e com isso evitou bater-se em defesa de sua honra.
Saindo da ficção e entrando na realidade, muita pendência foi resolvida ao amanhecer, no campo, diante de testemunhas trajadas de preto e de um cirurgião adrede. Lavrava-se ata, como nos casamentos e nas reuniões das academias.
Aqui no Brasil tivemos alguns duelos históricos que também não se realizaram, mas foram gravemente encenados e, como sempre, com a honra lavada, os contendores se apertavam as mãos, sóbrios e aliviados.
Curiosamente houve poucos duelos por causa de mulher -uma das causas mais frequentes dos duelos na Europa. Tivemos o duelo de Pardal Mallet e Coelho Neto e outro, mais dramático, entre Olavo Bilac e Raul Pompéia. Por sinal, quatro escritores que brigaram ou quiseram brigar. Não lembro mais o motivo que causou o primeiro duelo. Sei que Brito Broca, no livro que escreveu sobre a vida literária daquele tempo, narra em detalhes a briga.
O caso de Bilac e Pompéia foi mais sério, pois se tratou de um típico caso de patrulhamento ideológico. Bilac acusou Pompéia de ter aderido ao governo Floriano Peixoto, aceitando um cargo de quinto escalão. Montou em cima do autor de "O Ateneu", descrevendo-o como um masturbador, que passava as noites invocando as mulheres que vira durante o dia. Pisada de bola do grande poeta.
Pompéia não gostou, era nervoso, mais tarde se suicidaria num dia de Natal para provar aos que o patrulhavam que era um homem honrado.
Uma pena. Pompéia morreu cedo, escreveu uma obra-prima. Creio que o maior personagem da literatura nacional não é Capitu, nem Macunaíma, nem Riobaldo, nem Brás Cubas. O professor Aristarco, copiado de um personagem da vida real, é de longe o personagem mais bem construído pela ficção brasileira. Paradoxalmente "O Ateneu", obra isolada, só pode ser comparado a outra obra isolada, "Os Sertões", de Euclydes da Cunha. Fica difícil explicar isso, nem há espaço. Mas um dia ainda escreverei sobre isso. Se a afirmação parece uma ameaça, digo que é ameaça mesmo.
De minha parte, posso ir tranquilo para a eternidade porque, se não tive fortuna e glória, tive um duelo não consumado que deu certo charme à banalidade da vida que levo.
Acho que já contei essa história, vou resumi-la. O cônsul argentino em São Paulo sentiu-se ofendido por uma crônica que eu publicara no "Correio da Manhã" e na Folha, lá pelos inícios dos anos 60. Desafiou-me para um duelo ao primeiro sangue, apresentou-me a seus padrinhos e pediu que lhe apresentasse os meus.
Sem consulta prévia aos meus amigos, apresentei dois deles, Décio Pignatari e Hermano Alves, mas tive a cautela de sugerir que o duelo não fosse de armas brancas ou de fogo. Um duelo de cuspe à distância. A idéia, aliás, foi do Hermano Alves. O cônsul não aceitou. Mas deu a sua honra por lavada.



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