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CARLOS HEITOR CONY
Da necessidade de ressuscitar os duelos
Passaram de moda, mas
não deveriam ter passado.
Bem diferente do rapé, que também passou de moda, mas era
uma porcaria. Até hoje não entendi o tipo de prazer que o rapé
provocava. Devido a uma alergia
antiga, espirro todos os dias e não
gosto, embora me garantam que
espirrar é sinal de saúde, uma vez
que os moribundos nunca espirram. Mas provocar o espirro ou
qualquer irritação no nariz deve
ser masoquismo e porcaria mesmo.
Os duelos não. Eram românticos e necessários. Eles podiam resolver todas as questões, as pessoais e as coletivas, as da humanidade em geral. O homem primitivo tinha isso de sábio. Quando
surgia um problema entre duas
facções, entre duas tribos, dava-se
um pau para cada chefe e elas decidiam na porrada quem tinha
razão. E, tendo ou não tendo razão, esclareciam os fatos de forma
radical e inquestionável.
Lembro que, durante a guerra
das Malvinas, uma estupidez a
mais da raça humana, publiquei
em "Fatos&Fotos" uma página
que me custou centenas de cartas
de protesto. Peguei um inglês ilustre, Macmillan, ex-primeiro-ministro da Inglaterra, e Jorge Luiz
Borges, escritor e emblema da civilização portenha. Os dois tinham em comum a velhice, a cegueira e a bengala.
Sugeri que, em vez de bombardeiros, navios, tanques, canhões e
tropas de gente inocente, os dois
próceres decidissem a questão na
base de bengaladas. Nada mais
"belle époque" e civilizado. Vidas
seriam poupadas, dinheiro não
seria gasto com as complexas movimentações guerreiras.
Além de ex-primeiro-ministro,
Macmillan era dono de uma editora famosa, homem de cultura,
tal como Borges. Os dois já haviam adentrado a casa dos 80
anos e, sendo cegos, não veriam
sangue, se acaso surgisse sangue
no duelo entre os dois. Ao vencedor seriam dadas as batatas, como sempre.
No plano da ficção, gosto de
dois duelos contados por Eça de
Queiroz, um deles em "Os
Maias", o outro em "O Conde de
Abranhos". Nenhum dos dois se
realizou. O primeiro foi evitado
porque o desafiado escreveu uma
carta abominável ao desafiador.
Dâmaso Salcede declarou-se bêbado por ocasião do agravo que
cometera contra João da Ega.
No segundo, Alipio Abranhos,
após a noite passada em cólicas,
sem sair da latrina, denunciou
anonimamente o duelo à polícia e
com isso evitou bater-se em defesa
de sua honra.
Saindo da ficção e entrando na
realidade, muita pendência foi
resolvida ao amanhecer, no campo, diante de testemunhas trajadas de preto e de um cirurgião
adrede. Lavrava-se ata, como nos
casamentos e nas reuniões das
academias.
Aqui no Brasil tivemos alguns
duelos históricos que também
não se realizaram, mas foram
gravemente encenados e, como
sempre, com a honra lavada, os
contendores se apertavam as
mãos, sóbrios e aliviados.
Curiosamente houve poucos
duelos por causa de mulher
-uma das causas mais frequentes dos duelos na Europa. Tivemos o duelo de Pardal Mallet e
Coelho Neto e outro, mais dramático, entre Olavo Bilac e Raul
Pompéia. Por sinal, quatro escritores que brigaram ou quiseram
brigar. Não lembro mais o motivo
que causou o primeiro duelo. Sei
que Brito Broca, no livro que escreveu sobre a vida literária daquele tempo, narra em detalhes a
briga.
O caso de Bilac e Pompéia foi
mais sério, pois se tratou de um típico caso de patrulhamento ideológico. Bilac acusou Pompéia de
ter aderido ao governo Floriano
Peixoto, aceitando um cargo de
quinto escalão. Montou em cima
do autor de "O Ateneu", descrevendo-o como um masturbador,
que passava as noites invocando
as mulheres que vira durante o
dia. Pisada de bola do grande
poeta.
Pompéia não gostou, era nervoso, mais tarde se suicidaria num
dia de Natal para provar aos que
o patrulhavam que era um homem honrado.
Uma pena. Pompéia morreu cedo, escreveu uma obra-prima.
Creio que o maior personagem da
literatura nacional não é Capitu,
nem Macunaíma, nem Riobaldo,
nem Brás Cubas. O professor Aristarco, copiado de um personagem
da vida real, é de longe o personagem mais bem construído pela
ficção brasileira. Paradoxalmente "O Ateneu", obra isolada, só
pode ser comparado a outra obra
isolada, "Os Sertões", de Euclydes
da Cunha. Fica difícil explicar isso, nem há espaço. Mas um dia
ainda escreverei sobre isso. Se a
afirmação parece uma ameaça,
digo que é ameaça mesmo.
De minha parte, posso ir tranquilo para a eternidade porque,
se não tive fortuna e glória, tive
um duelo não consumado que
deu certo charme à banalidade
da vida que levo.
Acho que já contei essa história,
vou resumi-la. O cônsul argentino
em São Paulo sentiu-se ofendido
por uma crônica que eu publicara
no "Correio da Manhã" e na Folha, lá pelos inícios dos anos 60.
Desafiou-me para um duelo ao
primeiro sangue, apresentou-me
a seus padrinhos e pediu que lhe
apresentasse os meus.
Sem consulta prévia aos meus
amigos, apresentei dois deles, Décio Pignatari e Hermano Alves,
mas tive a cautela de sugerir que
o duelo não fosse de armas brancas ou de fogo. Um duelo de cuspe
à distância. A idéia, aliás, foi do
Hermano Alves. O cônsul não
aceitou. Mas deu a sua honra por
lavada.
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