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MARCELO COELHO
Do Fome Zero à autofagia parlamentar
Meus conhecimentos de medicina são praticamente
nulos, e as habituais descobertas
nessa área -os efeitos benéficos
ou nocivos do espinafre sobre a
próstata, por exemplo- me inspiram mais desinteresse que otimismo. Notícias a respeito de novas
técnicas de emagrecimento, em
especial, competem com as relativas à acupuntura e à calvície para
me deixar num estado de indiferença próximo da melancolia.
Quem se lembra do Xenical? E do
quitosana?
Espantei-me, assim, ao ler detalhes sobre a cirurgia de redução
de estômago, tão eficaz no caso de
Roberto Jefferson. Ele agora tem
de se alimentar quase exclusivamente de sopas e mingaus. Pensava que ele pudesse comer de tudo,
mas em pouca quantidade. Menos mal que, nestes tempos de tensão política, o deputado se conceda alguns bombons "Alpino" e
quadradinhos de chocolate meio
amargo, ingeridos em doses minúsculas ao longo do dia.
Imagens de restrição alimentar
devem ocorrer com freqüência na
mente de Roberto Jefferson. Se
não me engano, num dos seus primeiros depoimentos, ele atribuiu
a uma espécie de "síndrome de
abstinência" a vitória de Severino
Cavalcanti nas eleições para a
presidência da Câmara. Assegurava que o "mensalão", ao ter sido
interrompido, deixara muitos
parlamentares de barriga vazia,
com os bicos abertos como filhotes
de passarinhos -Jefferson imitava-os com um abre-e-fecha nas
mãos- esperando alimento no
ninho.
Em que medida, pensei, a transformação física sofrida por Roberto Jefferson não terá tido conseqüências sobre seu atual comportamento político? Sem dúvida, ele
procura construir uma nova imagem de si mesmo; o aberrante personagem que defendia Fernando
Collor há mais de dez anos tornou-se bem menos imprudente e
cultiva, tanto quanto for possível,
uma aura de credibilidade junto
à opinião pública com a qual não
sonhava naqueles tempos cetáceos.
Acima de tudo, ele celebra a semelhança física com o perfil médio do parlamentar brasileiro; há
alguns mais gordos, outros mais
magros, alguns mais elegantes,
outros menos... Contudo -e seu
olhar triunfa nessa hora, avaliando seus colegas de plenário-, Jefferson insiste num ponto: "Posso
não ser perfeito, mas não sou pior
do que nenhum de vocês". Uma
equalização moral devastadora,
tema constante em suas declarações, reflete desse modo a conquista da normalidade corporal.
E num aspecto ele tem razão: se
praticamente todos os políticos
têm gastos não-declarados de
campanha, por exemplo, e se
Marcos Valério parece ter ajudado a todos, é natural que, numa
espiral de denúncias, o regime de
Roberto Jefferson tenha terminado num espetáculo de canibalismo e autofagia parlamentar.
O comentário pode parecer frívolo, mas incide, a meu ver, sobre
um aspecto importante. Não só
Roberto Jefferson mas quase todos
os personagens envolvidos -de
Lula a Fernanda Karina- estão
entregues a uma lógica publicitária, e não exclusivamente política;
o sucesso de um candidato a presidente, tanto quanto o de uma
candidata às páginas da "Playboy", depende, em última análise,
de técnicas sofisticadas de manipulação da imagem pessoal.
Foi preciso contratar um artista
a peso de ouro -Duda Mendonça- para que Lula se tornasse
presidente. Graças a Duda, extirparam-se, na campanha, os últimos resíduos de "petismo" que
Lula pudesse ter. Alguns parlamentares petistas dizem não reconhecer o velho partido no lamaçal
de hoje, mas já na campanha de
2002 o PT se desfigurara voluntariamente sob camadas e mais camadas de cosmético.
É uma ironia, aliás, que o depoimento de Duda Mendonça na
CPI dos Correios tenha sido celebrado como um dos mais verídicos até agora. Quando a fala de
um marqueteiro -ou seja, a fala
de um profissional da dissimulação e do convencimento- é tida
como reveladora e sincera, fico me
perguntando que verdades mais
terríveis se ocultaram por meio de
suas confissões.
Seja como for, um dos fatores
decisivos de todo o escândalo é o
custo altíssimo das campanhas
eleitorais. Rouba-se, no mínimo,
para se poder financiar a próxima
eleição.
Assim, o candidato deixa de representar interesses desta ou daquela camada da sociedade para
tornar-se apenas uma "celebridade" de tipo especial, isto é, dependente do voto popular para permanecer no palco.
Lula sabia de tudo? Não sabia
de nada? Por enquanto, ninguém
pode saber. Mas certamente,
quando recorreu a Duda Mendonça, ao PL e ao PTB para subir
ao poder, Lula e a cúpula partidária sabiam de uma coisa: estavam
engajados numa encenação sentimental, sem consistência ideológica nenhuma.
Alguns, a meu ver, encararam
essa encenação como um sacrifício inevitável -do mesmo modo
que, antigamente, era preciso
derramar um bocado de sangue
para chegar ao poder. A disposição para a mentira, transformada em virtude e ato de renúncia,
abre campo para qualquer tipo
de casuísmo moral.
Outros terminaram acreditando na própria encenação: parece
ser este o caso de Lula, pelo menos
nos dias em que repete a radionovela de sua ascensão social como
se fosse a mais brilhante conquista histórica do proletariado latino-americano.
Duda Mendonça ofereceu ao
presidente o Romanée-Conti e o
Fome Zero. No governo, Lula segue o modelo de Hugo Chávez e
Henrique Meirelles ao mesmo
tempo; é natural que "as elites"
não saibam se é melhor que ele fique ou que ele saia. Mas, na verdade, ele não está nem dentro
nem fora: a personagem só pode
existir, de fato, numa permanente
campanha eleitoral. Encontra-se,
contudo, sem marqueteiro; só pode contar com seus próprios esforços. E com a própria sorte.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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