São Paulo, quarta-feira, 17 de agosto de 2005

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MARCELO COELHO

Do Fome Zero à autofagia parlamentar

Meus conhecimentos de medicina são praticamente nulos, e as habituais descobertas nessa área -os efeitos benéficos ou nocivos do espinafre sobre a próstata, por exemplo- me inspiram mais desinteresse que otimismo. Notícias a respeito de novas técnicas de emagrecimento, em especial, competem com as relativas à acupuntura e à calvície para me deixar num estado de indiferença próximo da melancolia. Quem se lembra do Xenical? E do quitosana?
Espantei-me, assim, ao ler detalhes sobre a cirurgia de redução de estômago, tão eficaz no caso de Roberto Jefferson. Ele agora tem de se alimentar quase exclusivamente de sopas e mingaus. Pensava que ele pudesse comer de tudo, mas em pouca quantidade. Menos mal que, nestes tempos de tensão política, o deputado se conceda alguns bombons "Alpino" e quadradinhos de chocolate meio amargo, ingeridos em doses minúsculas ao longo do dia.
Imagens de restrição alimentar devem ocorrer com freqüência na mente de Roberto Jefferson. Se não me engano, num dos seus primeiros depoimentos, ele atribuiu a uma espécie de "síndrome de abstinência" a vitória de Severino Cavalcanti nas eleições para a presidência da Câmara. Assegurava que o "mensalão", ao ter sido interrompido, deixara muitos parlamentares de barriga vazia, com os bicos abertos como filhotes de passarinhos -Jefferson imitava-os com um abre-e-fecha nas mãos- esperando alimento no ninho.
Em que medida, pensei, a transformação física sofrida por Roberto Jefferson não terá tido conseqüências sobre seu atual comportamento político? Sem dúvida, ele procura construir uma nova imagem de si mesmo; o aberrante personagem que defendia Fernando Collor há mais de dez anos tornou-se bem menos imprudente e cultiva, tanto quanto for possível, uma aura de credibilidade junto à opinião pública com a qual não sonhava naqueles tempos cetáceos.
Acima de tudo, ele celebra a semelhança física com o perfil médio do parlamentar brasileiro; há alguns mais gordos, outros mais magros, alguns mais elegantes, outros menos... Contudo -e seu olhar triunfa nessa hora, avaliando seus colegas de plenário-, Jefferson insiste num ponto: "Posso não ser perfeito, mas não sou pior do que nenhum de vocês". Uma equalização moral devastadora, tema constante em suas declarações, reflete desse modo a conquista da normalidade corporal.
E num aspecto ele tem razão: se praticamente todos os políticos têm gastos não-declarados de campanha, por exemplo, e se Marcos Valério parece ter ajudado a todos, é natural que, numa espiral de denúncias, o regime de Roberto Jefferson tenha terminado num espetáculo de canibalismo e autofagia parlamentar.
O comentário pode parecer frívolo, mas incide, a meu ver, sobre um aspecto importante. Não só Roberto Jefferson mas quase todos os personagens envolvidos -de Lula a Fernanda Karina- estão entregues a uma lógica publicitária, e não exclusivamente política; o sucesso de um candidato a presidente, tanto quanto o de uma candidata às páginas da "Playboy", depende, em última análise, de técnicas sofisticadas de manipulação da imagem pessoal.
Foi preciso contratar um artista a peso de ouro -Duda Mendonça- para que Lula se tornasse presidente. Graças a Duda, extirparam-se, na campanha, os últimos resíduos de "petismo" que Lula pudesse ter. Alguns parlamentares petistas dizem não reconhecer o velho partido no lamaçal de hoje, mas já na campanha de 2002 o PT se desfigurara voluntariamente sob camadas e mais camadas de cosmético.
É uma ironia, aliás, que o depoimento de Duda Mendonça na CPI dos Correios tenha sido celebrado como um dos mais verídicos até agora. Quando a fala de um marqueteiro -ou seja, a fala de um profissional da dissimulação e do convencimento- é tida como reveladora e sincera, fico me perguntando que verdades mais terríveis se ocultaram por meio de suas confissões.
Seja como for, um dos fatores decisivos de todo o escândalo é o custo altíssimo das campanhas eleitorais. Rouba-se, no mínimo, para se poder financiar a próxima eleição.
Assim, o candidato deixa de representar interesses desta ou daquela camada da sociedade para tornar-se apenas uma "celebridade" de tipo especial, isto é, dependente do voto popular para permanecer no palco.
Lula sabia de tudo? Não sabia de nada? Por enquanto, ninguém pode saber. Mas certamente, quando recorreu a Duda Mendonça, ao PL e ao PTB para subir ao poder, Lula e a cúpula partidária sabiam de uma coisa: estavam engajados numa encenação sentimental, sem consistência ideológica nenhuma.
Alguns, a meu ver, encararam essa encenação como um sacrifício inevitável -do mesmo modo que, antigamente, era preciso derramar um bocado de sangue para chegar ao poder. A disposição para a mentira, transformada em virtude e ato de renúncia, abre campo para qualquer tipo de casuísmo moral.
Outros terminaram acreditando na própria encenação: parece ser este o caso de Lula, pelo menos nos dias em que repete a radionovela de sua ascensão social como se fosse a mais brilhante conquista histórica do proletariado latino-americano.
Duda Mendonça ofereceu ao presidente o Romanée-Conti e o Fome Zero. No governo, Lula segue o modelo de Hugo Chávez e Henrique Meirelles ao mesmo tempo; é natural que "as elites" não saibam se é melhor que ele fique ou que ele saia. Mas, na verdade, ele não está nem dentro nem fora: a personagem só pode existir, de fato, numa permanente campanha eleitoral. Encontra-se, contudo, sem marqueteiro; só pode contar com seus próprios esforços. E com a própria sorte.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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