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ARNALDO JABOR
Malandro renasce em "Desabrigo e Outros Trecos"
Alguma coisa importante se perdeu no Brasil. ("Deixa de besteira,
cara, a história não tem rumo
nem ponto de partida. Não há
identidade nacional fixa, tudo é
dinâmico... Cultura nacional é ridícula na sociedade contemporânea", dirão os globalizadinhos.)
É... Pode ser... Mas eu tenho a sensação de que alguma coisa essencial se perdeu no Brasil -e foi de
68 para cá.
Em 68, jovens pós-utópicos, apagou-se a luz geral que nos mostrava o Brasil. Acenderam outra iluminação, artificial, militarizada,
fascistóide, criando um país de
imitação, desinfetado dos perigos
democráticos. Surgiu um triste
populismo verde-oliva na cultura,
um Brasil "moral e cívico", com os
milicos promovendo uma falsa
malemolência careta, com Caetano e Gil em cana e Simonal em alta, numa des-construção proposital do talento popular.
O malandro carioca -e tudo
que ele passou de ginga, inteligência, desvio crítico, leveza safada
de preto forro, salto bailarino de
escapista do "batente"- virou
um pivetinho de fancaria. Nos
anos 30 e 40, o malandro e sua
cultura, principalmente na música popular, encarnavam uma inconsciente defesa de um mundo
livre, fugindo criticamente do poder, numa linhagem clara desde
"o tempo do Rei", como ensina
Antonio Candido na "Dialética
da Malandragem".
Em 68, veio a trombada e interrompeu-se uma linha tênue de
inocentes comportamentos iluminados por uma funda tradição
nacional. Começa a morte de
uma leveza. Perdeu-se o floreio, a
delicadeza de um cotidiano material pobre, mas nítido; precário,
mas habitado por personagens
com hábitos e falas que os defendiam de uma diluição no sururu,
no banzé das classes urbanas. A
gíria era a língua protetiva do povo, poética narrativa das aventuras orgulhosas dos malandros, e
não esta deprimente algaravia de
otários de hoje.
A malandragem foi substituída
pela pilantragem. O simplismo
cultural cresceu muito nesta época, num empobrecimento proposital, mandado pelos donos do poder militar e pelo milagre multinacional.
Enquanto o malandro, esta figura malazártica de nossa cultura, forjava uma linguagem que
costurava as margens da vida,
com uma ética e uma poética, o
pilantra que vem com Simonal e
Carlos Imperial era o malandro
querendo descolar um lugar na
sociedade do "milagre". O pilantra é o malandro oportunista (e
sinto isso acontecendo hoje de novo, com os pagodeiros, os neguinhos puxa-sacos de terninho
branco e sorrisinho matreiro falando nas bundinhas-tchan).
Foi então que, subitamente, ressurge Antonio Fraga, o litero-malandro vindo dos fundos do Rio
antigo, que entra no botequim e,
"depois de derramar gole pro santo, mandou o lubrificante goela
abaixo e já desguiava quando
pulga mordeu ele atrás da orelha
e ele falou prá dentro: quero ser
mico catar bagana e coisa e loisa
se nessa coisa do coisa não tem
coisa!...".
Antonio Fraga. Quem é esse cara? Antonio Fraga é o seguinte:
primeiro, já morreu, em 93, aos 77
anos de idade. Era um proletário
cultíssimo, que morava em Queimados, num barraco com retratos
de Hegel e Beethoven na parede
de sopapo de barro e pau-a-pique.
Antonio Fraga era miserável, desses de recuperar "bagana de crivo" (ponta de cigarro), mas era
um puta escritor que deixou cento
e poucas páginas clássicas na literatura urbana.
Ninguém ouviu falar dele, mas
a ed. Relume Dumará acaba de
lançar o seu "Desabrigo e Outros
Trecos".
Eu conheci o Fraga em 88, apresentado pelo grande Fernando
Cony Campos, cineasta e poeta,
sendo que eu, sórdido badameco,
esnobei-o um pouco, achando que
o cara era "folclore", já que ele parecia um faxineiro de banheiro de
rodoviária.
Pois bem... Fui ler o livro agora;
pra quê? É apenas o "Serafim
Ponte Grande" carioca, até mais
espontâneo, sem a vontade meio
arrogante de impressionar que
Oswald tinha. Fraga escreve tudo
em gíria, sem pontuação, num
fluxo informadíssimo do texto
modernista, mas não se rende a
referências, não se agarra em estribos cultos, como tantos cagadores de texto que rolam por aí, os
"sacanocratas", como ele chama:
"Vou escrever tudo em gíria pra
arreliar um porrilhão de gente. Os
"anatoles" vão me esculhambar,
mas, se me der na telha usar a ausência de pontuação e fazer as
preposições ir parar na quirica
das donzelinhas cheias de nove-horas, vou gastar a sintaxe avacalhada que dá o gosto do nosso povo, pois não tenho que dar satisfações a qualquer sacanocrata!".
E aí vem o livro -tudo ali no
Mangue, entre putas, veados, aloprados, lunfas, potrucas, michês,
miquimbas e cafifas, todos no
"desabrigo" geral. E a importância do livro não vem de alguma
visão "naturalmente política"; a
beleza pura vem do texto, da linguagem lavrada no material pobre da época, como grafites poéticos em banheiro de botequim.
Mais que isso: o uso das palavras,
o ritmo malandro da escritura, as
metáforas pobres, condensando
morte e cachaça, empada com navalha, amor com bilhares, ressuscitam um tempo como foto reconstituída.
Olha o que o trambiqueiro culto
diz de seu mundo: "Vagabundos e
malandros. O primeiro é sempre
idealista e portanto individualista. O segundo é pragmatista e portanto povo. Há entre os dois a diferença quilométrica que há entre
uma balada de François Villon e
um samba de Noel Rosa".
Saquem as telegráficas antimetáforas: "Não tinha lua nenhuma
ouvindo ele, mas, no céu de café,
estrela era mato..." ou "Ele floreou
o corpo feito mestre-sala, enganou
com a esquerda, mandou a direita, e o outro subiu dez metros e lá
vai fumaça e veio batizar o quengo na beira da calçada e ficou esparramado toda a vida". Olha só
o que o canibal Oswald disse dele:
"... É a nova literatura do Brasil
que está aí, em Clarice Lispector,
Guimarães Rosa e Antonio Fraga". Ou Mario Pedrosa: "É um
clássico como Lima Barreto ou
Machado de Assis".
Falaram e disseram, malandragem, quem sou eu pra negar?
Leiam "Desabrigo", pois hoje só
temos pilantras e "excluídos". Nego aqui só ganha fama quando já
tá com a boca cheia de formiga...
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