São Paulo, Terça-feira, 17 de Agosto de 1999
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ARNALDO JABOR
Malandro renasce em "Desabrigo e Outros Trecos"

Alguma coisa importante se perdeu no Brasil. ("Deixa de besteira, cara, a história não tem rumo nem ponto de partida. Não há identidade nacional fixa, tudo é dinâmico... Cultura nacional é ridícula na sociedade contemporânea", dirão os globalizadinhos.) É... Pode ser... Mas eu tenho a sensação de que alguma coisa essencial se perdeu no Brasil -e foi de 68 para cá.
Em 68, jovens pós-utópicos, apagou-se a luz geral que nos mostrava o Brasil. Acenderam outra iluminação, artificial, militarizada, fascistóide, criando um país de imitação, desinfetado dos perigos democráticos. Surgiu um triste populismo verde-oliva na cultura, um Brasil "moral e cívico", com os milicos promovendo uma falsa malemolência careta, com Caetano e Gil em cana e Simonal em alta, numa des-construção proposital do talento popular.
O malandro carioca -e tudo que ele passou de ginga, inteligência, desvio crítico, leveza safada de preto forro, salto bailarino de escapista do "batente"- virou um pivetinho de fancaria. Nos anos 30 e 40, o malandro e sua cultura, principalmente na música popular, encarnavam uma inconsciente defesa de um mundo livre, fugindo criticamente do poder, numa linhagem clara desde "o tempo do Rei", como ensina Antonio Candido na "Dialética da Malandragem".
Em 68, veio a trombada e interrompeu-se uma linha tênue de inocentes comportamentos iluminados por uma funda tradição nacional. Começa a morte de uma leveza. Perdeu-se o floreio, a delicadeza de um cotidiano material pobre, mas nítido; precário, mas habitado por personagens com hábitos e falas que os defendiam de uma diluição no sururu, no banzé das classes urbanas. A gíria era a língua protetiva do povo, poética narrativa das aventuras orgulhosas dos malandros, e não esta deprimente algaravia de otários de hoje.
A malandragem foi substituída pela pilantragem. O simplismo cultural cresceu muito nesta época, num empobrecimento proposital, mandado pelos donos do poder militar e pelo milagre multinacional.
Enquanto o malandro, esta figura malazártica de nossa cultura, forjava uma linguagem que costurava as margens da vida, com uma ética e uma poética, o pilantra que vem com Simonal e Carlos Imperial era o malandro querendo descolar um lugar na sociedade do "milagre". O pilantra é o malandro oportunista (e sinto isso acontecendo hoje de novo, com os pagodeiros, os neguinhos puxa-sacos de terninho branco e sorrisinho matreiro falando nas bundinhas-tchan).
Foi então que, subitamente, ressurge Antonio Fraga, o litero-malandro vindo dos fundos do Rio antigo, que entra no botequim e, "depois de derramar gole pro santo, mandou o lubrificante goela abaixo e já desguiava quando pulga mordeu ele atrás da orelha e ele falou prá dentro: quero ser mico catar bagana e coisa e loisa se nessa coisa do coisa não tem coisa!...".
Antonio Fraga. Quem é esse cara? Antonio Fraga é o seguinte: primeiro, já morreu, em 93, aos 77 anos de idade. Era um proletário cultíssimo, que morava em Queimados, num barraco com retratos de Hegel e Beethoven na parede de sopapo de barro e pau-a-pique. Antonio Fraga era miserável, desses de recuperar "bagana de crivo" (ponta de cigarro), mas era um puta escritor que deixou cento e poucas páginas clássicas na literatura urbana.
Ninguém ouviu falar dele, mas a ed. Relume Dumará acaba de lançar o seu "Desabrigo e Outros Trecos".
Eu conheci o Fraga em 88, apresentado pelo grande Fernando Cony Campos, cineasta e poeta, sendo que eu, sórdido badameco, esnobei-o um pouco, achando que o cara era "folclore", já que ele parecia um faxineiro de banheiro de rodoviária.
Pois bem... Fui ler o livro agora; pra quê? É apenas o "Serafim Ponte Grande" carioca, até mais espontâneo, sem a vontade meio arrogante de impressionar que Oswald tinha. Fraga escreve tudo em gíria, sem pontuação, num fluxo informadíssimo do texto modernista, mas não se rende a referências, não se agarra em estribos cultos, como tantos cagadores de texto que rolam por aí, os "sacanocratas", como ele chama: "Vou escrever tudo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente. Os "anatoles" vão me esculhambar, mas, se me der na telha usar a ausência de pontuação e fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove-horas, vou gastar a sintaxe avacalhada que dá o gosto do nosso povo, pois não tenho que dar satisfações a qualquer sacanocrata!".
E aí vem o livro -tudo ali no Mangue, entre putas, veados, aloprados, lunfas, potrucas, michês, miquimbas e cafifas, todos no "desabrigo" geral. E a importância do livro não vem de alguma visão "naturalmente política"; a beleza pura vem do texto, da linguagem lavrada no material pobre da época, como grafites poéticos em banheiro de botequim. Mais que isso: o uso das palavras, o ritmo malandro da escritura, as metáforas pobres, condensando morte e cachaça, empada com navalha, amor com bilhares, ressuscitam um tempo como foto reconstituída.
Olha o que o trambiqueiro culto diz de seu mundo: "Vagabundos e malandros. O primeiro é sempre idealista e portanto individualista. O segundo é pragmatista e portanto povo. Há entre os dois a diferença quilométrica que há entre uma balada de François Villon e um samba de Noel Rosa".
Saquem as telegráficas antimetáforas: "Não tinha lua nenhuma ouvindo ele, mas, no céu de café, estrela era mato..." ou "Ele floreou o corpo feito mestre-sala, enganou com a esquerda, mandou a direita, e o outro subiu dez metros e lá vai fumaça e veio batizar o quengo na beira da calçada e ficou esparramado toda a vida". Olha só o que o canibal Oswald disse dele: "... É a nova literatura do Brasil que está aí, em Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Antonio Fraga". Ou Mario Pedrosa: "É um clássico como Lima Barreto ou Machado de Assis".
Falaram e disseram, malandragem, quem sou eu pra negar? Leiam "Desabrigo", pois hoje só temos pilantras e "excluídos". Nego aqui só ganha fama quando já tá com a boca cheia de formiga...


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