São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

A China é uma loja de molduras

Qualquer estrangeiro que se aventurar pelas atrações turísticas de Pequim (os arredores da Cidade Proibida, o Palácio de Verão etc.) ou Xangai (a região central, em torno do museu) mais cedo ou mais tarde será assediado por uma ou duas chinesas sorridentes que, falando inglês, tentarão convencê-lo a visitar uma exposição ali perto. Não chega a ser um golpe. As moças são estudantes de arte que querem apenas mostrar (e vender) os seus trabalhos. É lógico que não convidam nenhum chinês para a exposição.
Nos últimos 20 anos, a arte chinesa "de vanguarda", antes sufocada pelo realismo socialista e pela revolução cultural, floresceu em escolas e universidades e foi sendo progressiva e sistematicamente alavancada para o centro do mercado internacional, num movimento calculado e orquestrado por críticos, curadores e marchands, a maioria ocidentais, como costuma acontecer no mundo das artes plásticas.
Graças a esse impulso, a quantidade de artistas e a variedade das obras produzidas hoje na China continental são impressionantes. Pela quantidade, é natural que haja artistas interessantes entre tantos, e que alguns sejam mais interessantes do que outros. Pela extrema variedade, no entanto, também é natural que o aspecto predominante do conjunto seja o kitsch.
Há uma simultaneidade de trabalhos pop, surrealistas, expressionistas, acadêmicos, realistas, conceituais, de body art etc. convivendo sem nenhum problema ou hierarquia no mesmo espaço, como se o tempo não existisse e o presente fosse uma atualização de todas as épocas e estilos da arte ocidental do século 20 sobrepostos -em busca do tempo perdido, os chineses tomaram a pós-modernidade ao pé da letra.
Como efeito da estranha sensação provocada por esses cacoetes e anacronismos vendidos como novidade, até as principais e mais prestigiosas galerias, como a Red Gate, a Schoeni e a Courtyard, em Pequim, ou a ShanghArt, em Xangai, terminam ganhando ares de lojas de molduras.
No catálogo da exposição em cartaz na Faap até 3 de novembro, a crítica Karen Smith explica a situação: "Com a sua antiga e enraizada tradição de aprender dos mestres, as mentes criativas chinesas estavam prontas para compreender o que lhes era requerido para que pudessem entrar no mundo da arte contemporânea. Na China, a "imitação" nunca foi motivo de vergonha".
A China produz uma parcela significativa dos bens de consumo vendidos no Ocidente, mas consome imitações e falsificações desses mesmos produtos no mercado interno. Por uma curiosa analogia, nos últimos 20 anos os artistas chineses aprenderam a produzir arte para o exterior e a imitar o que viam no exterior.
Na cultura chinesa tradicional, não existe lugar para a arte como ela é compreendida há mais de um século no Ocidente. Não há lugar para uma arte auto-reflexiva. Para o chinês tradicional, arte e artesanato são a mesma coisa. O artista é um artesão que domina uma técnica e atinge a excelência dentro de uma determinada modalidade (caligrafia, pintura da natureza etc.) que ele reproduz no máximo com um toque pessoal. A idéia de invenção, desvio ou ruptura é inconcebível.
Ao longo dos últimos 20 anos, os novos artistas chineses avistaram na arte ocidental a chance de um corte radical com a tradição, e um passaporte para fora dessa sociedade opressiva, onde tudo e todos devem ter uma função predeterminada. Daí o anacronismo. Para eles, tanto faz ser surrealista, pop ou conceitual para romper com esse estado de coisas milenar.
Da mesma forma, a truculência política, que antes tinha impossibilitado o contato com o exterior, agora dá, aos olhos da comunidade internacional, credibilidade artística a uma reação e a uma ironia igualmente primárias e de efeito retardado: na China, basta pintar um "não" sobre o próprio corpo para ser considerado subversivo -e fazer arte.
Como no Brasil, os intelectuais e artistas chineses se debateram, desde o início do século 20, entre o nacionalismo, a modernização e a internacionalização. A questão foi congelada pela revolução cultural. Hoje, não se trata mais de uma oposição entre nacionalismo e internacionalização. Na balança, a contestação artística incomoda menos as autoridades do que as satisfaz a conquista dos mercados. Compreenderam isso aos poucos, em 20 anos de uma convivência peculiar e oportunista de comunismo na política com capitalismo na economia.
Nacionalismo e internacionalização passaram a ser os dois lados de uma mesma moeda de troca no mercado internacional: é preciso imitar o modo ocidental para entrar e ser aceito, mas sem perder uma certa cor local, para vender. Não seria descabido supor que um estrangeiro de passagem pelo Brasil pudesse sair daqui com uma impressão parecida.



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