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BERNARDO CARVALHO
A China é uma loja de molduras
Qualquer estrangeiro que
se aventurar pelas atrações
turísticas de Pequim (os arredores
da Cidade Proibida, o Palácio de
Verão etc.) ou Xangai (a região
central, em torno do museu) mais
cedo ou mais tarde será assediado
por uma ou duas chinesas sorridentes que, falando inglês, tentarão convencê-lo a visitar uma exposição ali perto. Não chega a ser
um golpe. As moças são estudantes de arte que querem apenas
mostrar (e vender) os seus trabalhos. É lógico que não convidam
nenhum chinês para a exposição.
Nos últimos 20 anos, a arte chinesa "de vanguarda", antes sufocada pelo realismo socialista e pela revolução cultural, floresceu
em escolas e universidades e foi
sendo progressiva e sistematicamente alavancada para o centro
do mercado internacional, num
movimento calculado e orquestrado por críticos, curadores e
marchands, a maioria ocidentais,
como costuma acontecer no mundo das artes plásticas.
Graças a esse impulso, a quantidade de artistas e a variedade das
obras produzidas hoje na China
continental são impressionantes.
Pela quantidade, é natural que
haja artistas interessantes entre
tantos, e que alguns sejam mais
interessantes do que outros. Pela
extrema variedade, no entanto,
também é natural que o aspecto
predominante do conjunto seja o
kitsch.
Há uma simultaneidade de trabalhos pop, surrealistas, expressionistas, acadêmicos, realistas,
conceituais, de body art etc. convivendo sem nenhum problema
ou hierarquia no mesmo espaço,
como se o tempo não existisse e o
presente fosse uma atualização
de todas as épocas e estilos da arte
ocidental do século 20 sobrepostos
-em busca do tempo perdido, os
chineses tomaram a pós-modernidade ao pé da letra.
Como efeito da estranha sensação provocada por esses cacoetes e
anacronismos vendidos como novidade, até as principais e mais
prestigiosas galerias, como a Red
Gate, a Schoeni e a Courtyard, em
Pequim, ou a ShanghArt, em
Xangai, terminam ganhando
ares de lojas de molduras.
No catálogo da exposição em
cartaz na Faap até 3 de novembro, a crítica Karen Smith explica
a situação: "Com a sua antiga e
enraizada tradição de aprender
dos mestres, as mentes criativas
chinesas estavam prontas para
compreender o que lhes era requerido para que pudessem entrar no mundo da arte contemporânea. Na China, a "imitação"
nunca foi motivo de vergonha".
A China produz uma parcela
significativa dos bens de consumo
vendidos no Ocidente, mas consome imitações e falsificações desses
mesmos produtos no mercado interno. Por uma curiosa analogia,
nos últimos 20 anos os artistas
chineses aprenderam a produzir
arte para o exterior e a imitar o
que viam no exterior.
Na cultura chinesa tradicional,
não existe lugar para a arte como
ela é compreendida há mais de
um século no Ocidente. Não há
lugar para uma arte auto-reflexiva. Para o chinês tradicional, arte
e artesanato são a mesma coisa. O
artista é um artesão que domina
uma técnica e atinge a excelência
dentro de uma determinada modalidade (caligrafia, pintura da
natureza etc.) que ele reproduz no
máximo com um toque pessoal. A
idéia de invenção, desvio ou ruptura é inconcebível.
Ao longo dos últimos 20 anos, os
novos artistas chineses avistaram
na arte ocidental a chance de um
corte radical com a tradição, e um
passaporte para fora dessa sociedade opressiva, onde tudo e todos
devem ter uma função predeterminada. Daí o anacronismo. Para eles, tanto faz ser surrealista,
pop ou conceitual para romper
com esse estado de coisas milenar.
Da mesma forma, a truculência
política, que antes tinha impossibilitado o contato com o exterior,
agora dá, aos olhos da comunidade internacional, credibilidade
artística a uma reação e a uma
ironia igualmente primárias e de
efeito retardado: na China, basta
pintar um "não" sobre o próprio
corpo para ser considerado subversivo -e fazer arte.
Como no Brasil, os intelectuais
e artistas chineses se debateram,
desde o início do século 20, entre o
nacionalismo, a modernização e
a internacionalização. A questão
foi congelada pela revolução cultural. Hoje, não se trata mais de
uma oposição entre nacionalismo
e internacionalização. Na balança, a contestação artística incomoda menos as autoridades do
que as satisfaz a conquista dos
mercados. Compreenderam isso
aos poucos, em 20 anos de uma
convivência peculiar e oportunista de comunismo na política com
capitalismo na economia.
Nacionalismo e internacionalização passaram a ser os dois lados de uma mesma moeda de troca no mercado internacional: é
preciso imitar o modo ocidental
para entrar e ser aceito, mas sem
perder uma certa cor local, para
vender. Não seria descabido supor que um estrangeiro de passagem pelo Brasil pudesse sair daqui com uma impressão parecida.
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