São Paulo, quinta, 17 de setembro de 1998

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CD CRÍTICA
Complexidade está de volta à MPB

da Reportagem Local

Talvez embalado pelo benefício de nunca ter sucumbido à exaustão de lançamentos contínuos -às vezes ocos-, Tom Zé chega aos 62 anos de idade em plena potência de inspiração artística.
"Com Defeito de Fabricação" é disco de verve comparável a seus melhores -"Tom Zé" (70), "Tom Zé" (72), "Todos os Olhos" (73), "Estudando o Samba" (76)-, com uma vantagem: prescinde das deficiências técnicas daqueles todos, hoje relegados à desmemória de RGE e Continental (aliás, essa gravadora existe mesmo?).
Até ao perigo de dependência na associação com David Byrne Tom Zé parece agora dizer "dane-se". O CD é bem mais autoral que o anterior da safra Byrne, que se perdia em volteios bilíngues artificiosos.
Os aparentemente amalucados conceitos que Tom Zé pretende forjar -"plagicombinação", "estética do arrastão", essas loucuras- rejuvenescem sua obra. Autorais, suas bricolagens dão baile na moderna técnica do sampler -essa, sim, assassina (superadora?) da autoria em música.
Aqui, o mais plagiado é... Tom Zé. Os versos atuais do "defeito" "Curiosidade" ("quem é que tá botando tanto piolho na cabeça do século?") são roubados de "A Babá" (72); os de "Gene" vêm de "O Sândalo" (72); "Burrice" é "Sabor de Burrice" (68) rebatizada.
Falta de originalidade? Não de fato. A cada retorno, Tom Zé recombina significados com ineditismo. Único, seu violão continua dissonante; abandonadas sistematicamente, suas idéias se renovam.
O mesmo ocorre com os "defeitos". Ouça 40 vezes seguidas "Politicar", "Esteticar", "Dançar". Nem com um século de reflexão se poderá decidir se Tom Zé lamenta ou celebra tais "defeitos".
"Esteticar" revela-se "espinha dorsal", como ele mesmo define. É o pândego homem-gabiru remetendo-se a "milord" (Byrne?) e se declarando, auto-irônico, "trapo de tripa", "fiapo de carne", "mero mameluco da cuca lelé".
Critica o colonizador? Critica. Mas critica também o outro, pedindo "help" galhofeiro ao dramaturgo Ariano Suassuna e ao crítico José Ramos Tinhorão, luminares do pensamento purista brasileiro. Ninguém escapa.
A moral é que a complexidade, por ora, está de volta à MPB (quer dizer, o Brasil nem sabe se vai lançar...). Mas Tom Zé, síntese tensa e dialética de duas vertentes muito populares -dum lado Caetano Veloso, adorado pelos pensantes, do outro Roberto Carlos, tradutor dos apaixonados que preferem que tudo vá ao inferno-, não é hermético na complexidade.
Pois, num país que vai escoando pelo gargalo da garrafa, refletir um tiquinho não há de causar pânico. Ah, mas calma, nem se sabe se o Brasil vai ouvir mesmo... Segura o tchan. (PAS)
²
Disco: Com Defeito de Fabricação Artista: Tom Zé Lançamento: Luaka Bop (importado) Onde encomendar: Baratos Afins (tel. 011/ 223-3629)



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