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São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2003

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Antologia nacional da "Zap Comix" reúne três décadas de história dos quadrinhos underground americanos

Senhores do subterrâneo

Divulgação
Página de Rick Griffin, publicada na "Zap" n°3


DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

No ano de 1954, a América concluiu que suas crianças estavam lendo porcarias demais nos gibis.
Pressionadas pelo livro "Sedução dos Inocentes", de Fredric Wertham (1895-1981), as editoras foram submetidas ao "Comics Code", conjunto de leis que proibia, entre outras coisas, o uso de gírias, profanidades, sexo e violência nas HQs, sob pena de serem recolhidas das bancas.
Treze anos depois, um jovem e franzino Robert Crumb, famoso criador do anti-herói "Fritz the Cat", decidiu rasgar o regulamento. Ao lado de meia dúzia de colegas o quadrinista fundou a "Zap Comix" e foi comer a sua vingança fria numa San Francisco tomada pelo movimento hippie.
"Zap", que ganha na próxima semana uma antologia inédita no país por obra da editora Conrad, testava os limites da linguagem dos quadrinhos da época e, principalmente, os limites das autoridades americanas, que já vinham tendo dores de cabeça demais com as revoltas de Watts, em Los Angeles, o movimento dos Panteras Negras e as manifestações de estudantes contra a guerra do Vietnã, que não raro terminavam em prisões.
"Acho que expandimos os limites do que era permitido fazer e encorajamos as pessoas a publicarem as suas próprias histórias. Foi o exemplo clássico de algo feito em casa, que era vendido na rua e atingiu um enorme sucesso", afirma à Folha Gilbert Shelton, 63, um dos colaboradores da revista.
Por "expandir os limites do que era permitido" entenda-se uma série de sátiras contundentes ao "american way of life", referências explícitas ao uso de drogas e muito sexo.
Por "sucesso" entenda-se tiragens de até 400 mil exemplares e um total de 14 números esporadicamente editados, entre um trabalho e outro da turma, ao longo dos mais de 35 anos de existência da publicação. O 15º, garante Shelton, já está sendo preparado e ficará pronto em meados de 2004.
Ao lado dele e de Crumb, outros nomes importantes do chamado "underground comix" -o "x" servia para reforçar o teor pornográfico, "x-rated", dos trabalhos dessa turma- compõem o time de "zapsters": Victor Moscoso, Robert Williams e Rick Griffin, criador, entre outros, do logo da revista "Rolling Stone"; os malditos S. Clay Wilson e Spain Rodriguez e o caçula, Paul Mavrides, que chegou à festa "20 anos depois de a cerveja ter acabado".
Farra, bebedeira, desafio ao "Comics Code", mas e a lei não foi aplicada? "O sistema funcionava de uma maneira que, havendo algum problema legal com a publicação, o primeiro a ser preso era o vendedor, depois a distribuidora, depois a editora, depois o artista. Para nós, não havia problema nenhum", explica Shelton.
Não deu outra: no ano de 1969, época da publicação do quarto número de "Zap", vários livreiros e distribuidores foram presos. "Essa publicação é feia, barata e degradante", sentenciou o juiz Joel Tyler, de Nova York, que ordenou uma invasão à gráfica onde a publicação era impressa.
"Lembro que o dono de uma livraria em San Francisco [a City Lights] foi preso nessa época. Mas pagou uma fiança de US$ 400 dólares e continuou vendendo."
À essa altura, Crumb, Robert Williams e toda a equipe da revista tinham suas fichas sobre a mesa do FBI. "Fui preso por várias razões, mas nenhuma delas política. Eu sabia que estava listado pelo governo. Crumb se recusou a pagar impostos, e a lei veio forte contra ele, mas ele conseguiu se safar", contou em entrevista à Folha, no início do ano, Williams, que atualmente vive de vender seus quadros para artistas e descolados de Hollywood.
Nem tão mal assim, Shelton mudou-se para a França em 1984 e divide seu tempo entre ilustrações de capas de livros e a série "Not Quite Dead", sobre uma banda de rock que "não foi feita para o sucesso".
"Wonder Wart-Hog" ou, no português, "Javali-Maravilha" também continua tomando o tempo do quadrinista.
Presente na antologia brazuca, a série, uma paródia das histórias de super-heróis da Marvel e DC, deve ser revivida para o suposto novo número de "Zap", que estaria sendo preparado por Moscoso nos EUA. "De diferente, só o meu traço que melhorou", brinca.
Morto em um acidente com sua Harley-Davidson em 1991, o eterno surfista Griffin foi o único que "se salvou", no final das contas. Convertido ao cristianismo ainda na década de 70, passou a acreditar que "uma raça de gigantes tinha habitado a Terra", como lembrou Crumb em entrevista ao "The Comics Journal". "Acho que ele via surfe na Bíblia", debocha.
Como você pode ver, um bom "zapster" perde um amigo, mas nunca perde uma piada.
ZAP COMIX. Vários autores. Editora: Conrad. Preço: R$ 39 (176 págs.)

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