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CRÍTICA
Eliane Caffé faz comédia sobre memória popular
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
J avé é uma vila sertaneja prestes a desaparecer sob as águas
de uma hidrelétrica. Como não
tem peso econômico nenhum,
sua única chance de sobreviver é
provar que tem alguma importância histórica.
Convencida disso por um líder
local (Nelson Xavier), a população delega ao excêntrico e pouco
confiável Biá (José Dumont), o
único homem letrado de Javé, a
tarefa de registrar as histórias
transmitidas oralmente de geração a geração desde a mítica fundação do lugarejo.
Esse argumento prenhe de possibilidades poderia degenerar numa apologia acrítica e demagógica da "memória popular", mas a
diretora Eliane Caffé (de "Kenoma") optou por um caminho
mais ousado e provocador.
Cada habitante de Javé tem uma
versão diferente da história, moldada por sua origem étnica, pela
posição social de sua família e pela própria fantasia.
A conclusão é evidente: todo
passado é uma construção, toda
memória é também ficção. A lembrança se imbrica inevitavelmente à invenção e ao desejo. História
e estória se confundem. Diante
dessa proliferação de versões conflitantes, revela-se impossível o
encargo de Biá de unificar os relatos numa narrativa coesa.
O filme é a história dessa impossibilidade. Acrescente-se ainda
que a tragicomédia de Biá é narrada retrospectivamente pelo personagem de Nelson Xavier, o que
confere ao enredo uma característica "de segunda mão". É uma
história dentro da história, como
todas as outras.
Feita essa opção básica por uma
abordagem moderna e dessacralizadora do tema, Eliane Caffé realiza um filme formalmente heterogêneo, cheio de arestas, mas
sustentado por uma tensão básica: entre, de um lado, a encenação
realista, quase documental, das
relações de Biá com seus contemporâneos e, de outro lado, a exposição estilizada dos vários relatos
sobre as origens de Javé.
Por exemplo, a versão contada
por um velho negro tem o sabor e
a estética de um mito africano;
outra, narrada por uma mulher,
ganha ares de épico sertanejo feminista. E assim por diante.
Mas o grande trunfo de "Narradores de Javé" está mesmo no
magnífico trabalho dos atores, em
particular de José Dumont, que
incorporou à ação de seu personagem piadas, frases e gestos brotados de sua inspiração durante
as filmagens.
O resultado de tudo isso é um
filme de surpreendente frescor e
comicidade, em que o próprio final inconclusivo e anticlimático
contribui para abalar o mito, hoje
redivivo, das histórias com princípio, meio e fim.
Narradores de Javé
Produção: Brasil, 2003
Direção: Eliane Caffé
Com: José Dumont, Nelson Xavier
Quando: hoje, às 22h30, no Cinesesc;
amanhã, às 16h, no CEU Jambeiro;
domingo, às 17h10, no MIS; sexta (24), às
19h, no shopping Villa Lobos; domingo
(26), às 19h, no Cine Morumbi Shopping
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