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São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2003

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CRÍTICA

Eliane Caffé faz comédia sobre memória popular

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

J avé é uma vila sertaneja prestes a desaparecer sob as águas de uma hidrelétrica. Como não tem peso econômico nenhum, sua única chance de sobreviver é provar que tem alguma importância histórica.
Convencida disso por um líder local (Nelson Xavier), a população delega ao excêntrico e pouco confiável Biá (José Dumont), o único homem letrado de Javé, a tarefa de registrar as histórias transmitidas oralmente de geração a geração desde a mítica fundação do lugarejo.
Esse argumento prenhe de possibilidades poderia degenerar numa apologia acrítica e demagógica da "memória popular", mas a diretora Eliane Caffé (de "Kenoma") optou por um caminho mais ousado e provocador.
Cada habitante de Javé tem uma versão diferente da história, moldada por sua origem étnica, pela posição social de sua família e pela própria fantasia.
A conclusão é evidente: todo passado é uma construção, toda memória é também ficção. A lembrança se imbrica inevitavelmente à invenção e ao desejo. História e estória se confundem. Diante dessa proliferação de versões conflitantes, revela-se impossível o encargo de Biá de unificar os relatos numa narrativa coesa.
O filme é a história dessa impossibilidade. Acrescente-se ainda que a tragicomédia de Biá é narrada retrospectivamente pelo personagem de Nelson Xavier, o que confere ao enredo uma característica "de segunda mão". É uma história dentro da história, como todas as outras.
Feita essa opção básica por uma abordagem moderna e dessacralizadora do tema, Eliane Caffé realiza um filme formalmente heterogêneo, cheio de arestas, mas sustentado por uma tensão básica: entre, de um lado, a encenação realista, quase documental, das relações de Biá com seus contemporâneos e, de outro lado, a exposição estilizada dos vários relatos sobre as origens de Javé.
Por exemplo, a versão contada por um velho negro tem o sabor e a estética de um mito africano; outra, narrada por uma mulher, ganha ares de épico sertanejo feminista. E assim por diante.
Mas o grande trunfo de "Narradores de Javé" está mesmo no magnífico trabalho dos atores, em particular de José Dumont, que incorporou à ação de seu personagem piadas, frases e gestos brotados de sua inspiração durante as filmagens.
O resultado de tudo isso é um filme de surpreendente frescor e comicidade, em que o próprio final inconclusivo e anticlimático contribui para abalar o mito, hoje redivivo, das histórias com princípio, meio e fim.


Narradores de Javé
     Produção: Brasil, 2003 Direção: Eliane Caffé Com: José Dumont, Nelson Xavier Quando: hoje, às 22h30, no Cinesesc; amanhã, às 16h, no CEU Jambeiro; domingo, às 17h10, no MIS; sexta (24), às 19h, no shopping Villa Lobos; domingo (26), às 19h, no Cine Morumbi Shopping


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