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São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A notícia que fez 25 anos

16 de outubro de 1978 - Em Roma, seriam quase 18 horas. Mais alguns minutos, a chaminé da capela Sistina soltaria uma fumaça -e a cor dessa fumaça (por mais anacrônico que pareça numa época de comunicações eletrônicas) seria importante para o mundo. Na sala dos teletipos, num canto da Redação, eu olhava as três máquinas que se moviam sozinhas, comandadas pelas centrais das agências Associated Press (AP), France Presse (AFP) e United Press International (UPI).
As bobinas de papel rolavam, a fita roxa ia imprimindo em cada uma delas os telegramas que não me interessavam: preço da lã em Melbourne, nota do governo da Nigéria sobre a extinção de animais, o treinamento de um atleta para tentar um recorde olímpico. Sozinho, eu olhava as teclas cada vez mais histéricas, trêmulas. Os operadores, na sala de stampa do Vaticano, ali no início da "via della Conciliazione", deviam estar mais nervosos do que eu. A qualquer instante, todas as notícias se deteriam para informar a cor da fumaça que deveria sair da capela Sistina. Era o segundo dia do conclave. E, no segundo dia, era o oitavo escrutínio, a oitava tentativa dos 111 cardeais para obter um líder espiritual para 1 bilhão de pessoas.
De repente, o teletipo da FP interrompeu o telegrama que enviava, as teclas ficaram indecisas, ameaçaram imprimir alguma coisa, a tira de papel rodou vazia diversos espaços e, logo em seguida, as outras máquinas também pararam, a mesma indecisão, a UPI chegou a continuar algumas linhas do telegrama interrompido até que, quase ao mesmo tempo, a fita roxa dos três teletipos deixou gravada no papel: foi eleito o novo papa. Repetimos: foi eleito o novo papa.
No outro canto da Redação, a televisão entrou com uma edição extraordinária, limitando-se a repetir a mesma frase: o novo papa fora eleito. Apesar da distância que separa a rua do Russel de Roma, compreendia a indecisão do operador. Nos sete escrutínios anteriores, a fumaça que saíra da chaminé não era preta nem branca, mas cinzenta. Creio que não fui o único a ficar revoltado contra essa maneira de comunicar um fato, independentemente da importância do próprio fato. Imaginava 111 homens que haviam chegado ao cardinalato, alguns deles notáveis pelo saber profano ou religioso, muitos deles provenientes de países altamente industrializados e, de repente, ficávamos todos dependendo da eficiência de uma velha chaminé. Honestamente, não se deveria esperar muita coisa de tais homens, se não reconhecêssemos em tudo aquilo -inclusive na chaminé- um poderoso, misterioso e maravilhoso mecanismo que fez a igreja atravessar 20 séculos de história.
Bem, temos o papa. Daqui a pouco a sacada principal da basílica se abrirá e, provavelmente, Pericle Felice, a menos que o próprio Felice tenha sido o eleito, pronunciará as palavras da tradição. Como bom latinista, ele exagerará na pronúncia dos acusativos, gaudiummmm, magnummmm, papammmm.
Os teletipos estavam parados. Passaram-se dez, 15 minutos. O teletipo da France Presse entrou em convulsão: depois de um silêncio em que os tipos rodavam de lá para cá, foi lançada no papel da bobina a letra K. A máquina parou bruscamente depois dessa primeira letra. O papel subiu alguns espaços e aí o telegrama entrou para valer: Cidade do Vaticano... (já era uma pista, o nome do novo papa começava por K, pensei em Köenig, um vienense) ...Karol Wojtyla é o novo papa.
A televisão interrompera um comercial e avisava que ia transmitir ao vivo a apresentação do novo papa ao povo reunido na piazza San Pietro.
Lá fui eu participar via satélite do mesmo pasmo que 200 mil romanos, espremidos na imensa praça, também experimentavam. O rosto redondo de Pericle Felici (novamente, como em agosto) trazia um sorriso, mas era sorriso diferente, meio desafiador, até mesmo irônico. "Annuntio vobis gaudium magnum: Habemus Papam." O povo aplaude sem entusiasmo, até aí nada de novo, a fumaça branca já tinha dado a mesma notícia, fazendo uso de outros signos e vocábulos. A voz se eleva: "Carolum, Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Wojtyla".
Os aplausos não foram muitos. Testemunhas que estavam na piazza, naquele instante, contam que todos se perguntavam: "Wow o quê?". Esperavam ouvir nomes familiares como Benelli, Baggio, Bertoli, Colombo, Pignedoli, Poletti -e de repente surge um nome estranho, seria um asiático, um africano? Logo se formou a unanimidade: é um polaco. Mas cardeal polonês era Stefan Wyszynski, lendário personagem da cortina de ferro, veterano de conclaves. Não sendo Wyszynski, com seu carisma de mártir, sua projeção internacional, quem seria esse Karol Wojtyla que interrompia a sucessão de italianos no trono de São Pedro havia mais de quatro séculos?
Pericle Felice acrescentara que o novo papa escolhera o nome de João Paulo 2º -e aí os aplausos foram maiores. Afinal, era um papa mesmo. Um jornalista americano, que estava de passagem por Roma e fora à piazza apenas por falta de programa melhor, declarou a um colega italiano: "Realmente, vocês sabem fazer a coisa".

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