|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FREE JAZZ - SÃO PAULO
Ironia: Kraftwerk levou o pop à ruína com ironia
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
É tarefa das mais complicadas
tentar encontrar um lugar em que
se encaixe a banda alemã Kraftwerk em 1998.
É provável que a história venha a
registrá-la como um paradoxo:
Kraftwerk pode ser o primeiro
produto musical inumano -ou
desumano, ou sobre-humano-,
mas também a última das bandas
humanistas por excelência. De
quando o homem já era máquina,
e a máquina ainda era homem.
Kraftwerk nasceu como um broto -um tumor, talvez- da experiência progressiva da virada entre
os 60 e os 70. Sua existência excêntrica se destacou do organismo do
rock progressivo e frutificou à medida que o organismo apodrecia.
À medida que Kraftwerk alcançava seu auge criativo -entre
"Autobahn" (74) e "Trans-Europe
Express" (77), passando por "Radio-Activity" (75)-, os maneirismos virtuosísticos obtidos pela
mão humana progressiva (e roqueira em geral) iam dando lugar
ao calculismo da máquina.
Sua música branca -fria e sem
quadris por constituição- destroçava a humanidade roqueira, mas
também a do suingue negro de
tantas variáveis desenvolvidas neste século (jazz, blues soul, funk...).
O confronto, em última instância, tornou-se o da branquidão européia (e aí a história do Kraftwerk
resvala no horror nazista) versus
as estratégias de sobrevivência
afro-americana -um caso de Velho Mundo versus Novo Mundo.
É um embate que se trava até hoje. Herdeiro do calculismo Kraftwerk, o tecno luta pelo direito de
existir, destituído de quadris como
é, em meio ao calor dionisíaco do
rock, da black music, das MPBs.
O jogo é cruel. Debatendo-se para existir, os pós-Kraftwerk -em
última análise o único tipo de música inovadora que os anos 90 produziram- empurram à derrocada
gêneros de establishment de Oasis
a Carlinhos Browns. Agonizante, o
rock tenta coligações desideologizadas -Prodigy, coisas assim.
E quem levou o pop à ruína foi,
ironicamente, o Kraftwerk.
Onde está a ironia? É que Kraftwerk era só ironia, a mais fina, séria e avassaladora ironia. Era, no
fundo, banda quase comunista, o
exercício final de revolta contra os
mundos imaginados por George
Orwell, Aldous Huxley e Arthur
Clarke -e já nos 70 quase reais.
Os exemplos se concentram em
sua obra. O tom de canto usado em
"Radio-Activity" faz os versos "radioatividade/ está no ar para mim e
para você/ radioatividade/ descoberta por Madame Curie" (e "you
and me" rima divinamente com
"Madame Curie") se consumarem
em pura poesia.
Tudo gira entre a celebração e as
mais cruéis constatações sobre a
contemporaneidade. Pode-se pensar no Kraftwerk como o protótipo
do homem ariano deslumbrado
pelas possibilidades ilimitadas da
eletrônica. Mas há que admitir que
tudo aquilo podia ser um mergulho desconsolado no macabro.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|