São Paulo, sábado, 17 de outubro de 1998

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FREE JAZZ - SÃO PAULO
Ironia: Kraftwerk levou o pop à ruína com ironia

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

É tarefa das mais complicadas tentar encontrar um lugar em que se encaixe a banda alemã Kraftwerk em 1998.
É provável que a história venha a registrá-la como um paradoxo: Kraftwerk pode ser o primeiro produto musical inumano -ou desumano, ou sobre-humano-, mas também a última das bandas humanistas por excelência. De quando o homem já era máquina, e a máquina ainda era homem.
Kraftwerk nasceu como um broto -um tumor, talvez- da experiência progressiva da virada entre os 60 e os 70. Sua existência excêntrica se destacou do organismo do rock progressivo e frutificou à medida que o organismo apodrecia.
À medida que Kraftwerk alcançava seu auge criativo -entre "Autobahn" (74) e "Trans-Europe Express" (77), passando por "Radio-Activity" (75)-, os maneirismos virtuosísticos obtidos pela mão humana progressiva (e roqueira em geral) iam dando lugar ao calculismo da máquina.
Sua música branca -fria e sem quadris por constituição- destroçava a humanidade roqueira, mas também a do suingue negro de tantas variáveis desenvolvidas neste século (jazz, blues soul, funk...).
O confronto, em última instância, tornou-se o da branquidão européia (e aí a história do Kraftwerk resvala no horror nazista) versus as estratégias de sobrevivência afro-americana -um caso de Velho Mundo versus Novo Mundo.
É um embate que se trava até hoje. Herdeiro do calculismo Kraftwerk, o tecno luta pelo direito de existir, destituído de quadris como é, em meio ao calor dionisíaco do rock, da black music, das MPBs.
O jogo é cruel. Debatendo-se para existir, os pós-Kraftwerk -em última análise o único tipo de música inovadora que os anos 90 produziram- empurram à derrocada gêneros de establishment de Oasis a Carlinhos Browns. Agonizante, o rock tenta coligações desideologizadas -Prodigy, coisas assim.
E quem levou o pop à ruína foi, ironicamente, o Kraftwerk.
Onde está a ironia? É que Kraftwerk era só ironia, a mais fina, séria e avassaladora ironia. Era, no fundo, banda quase comunista, o exercício final de revolta contra os mundos imaginados por George Orwell, Aldous Huxley e Arthur Clarke -e já nos 70 quase reais.
Os exemplos se concentram em sua obra. O tom de canto usado em "Radio-Activity" faz os versos "radioatividade/ está no ar para mim e para você/ radioatividade/ descoberta por Madame Curie" (e "you and me" rima divinamente com "Madame Curie") se consumarem em pura poesia.
Tudo gira entre a celebração e as mais cruéis constatações sobre a contemporaneidade. Pode-se pensar no Kraftwerk como o protótipo do homem ariano deslumbrado pelas possibilidades ilimitadas da eletrônica. Mas há que admitir que tudo aquilo podia ser um mergulho desconsolado no macabro.



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