São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"A DUPLA NOITE DAS TÍLIAS"

Relatos do italiano retratam Berlim pós-guerra

Carlo Levi lança olhar sem razão sobre o nazismo

MAURÍCIO SANTANA DIAS
DA REDAÇÃO

Visitar a Alemanha do pós-guerra, quando as cidades estavam sendo reconstruídas e os "Lager" ainda exalavam um cheiro fresco de morte, não era tarefa simples para ninguém. Muito menos para um judeu que sofreu em seu próprio país um período de confinamento nos anos de Mussolini e, a partir dessa experiência, escreveu o romance italiano talvez mais representativo dos anos 40, "Cristo Si È Fermato a Eboli" (Cristo Parou em Eboli).
Em 1958, Carlo Levi (1902-75), médico, pintor e um dos escritores mais relevantes de sua geração, decide fazer sua primeira viagem ao "país do Norte" e descrever, como fizera em romances-reportagens anteriores, o que visse por lá. "Vamos àquelas cidades povoadas e ordenadas, entre aquela multidão desconhecida e familiar, leves e abertos, com nossos olhos de hoje, e contemos simplesmente aquele pouco que nos foi dado ver e encontrar, sem a pretensão de dizer nada além de algumas palavras das mil coisas que podem ser descobertas e narradas", diz ele na apresentação deste "A Dupla Noite das Tílias".
Apesar da declarada intenção de contar simplesmente o que viu, Levi é movido por um duplo propósito: fazer crônica visual das coisas cotidianas e inferir a mecânica oculta dos fatos. A tentativa de desvendar o fenômeno do nazismo é o que de fato conduz o livro, feito de instantâneos líricos.
Ao chegar a Munique, sua primeira escala, o viajante encontra cidadãos educados, levando uma vida confortável e banal. O relato prossegue com vivacidade, desdobrando-se em descrições de personagens e de ambientes sobretudo noturnos -já que Levi, como bom boêmio que era, apreciava mais a noite que a manhã. Também não faltam analogias inteligentes entre pintura e história ou considerações sobre o teatro de Brecht etc.
O problema é que, nesse livro aparentemente despretensioso, Levi acaba caindo na armadilha onde tantos que tentaram "explicar" a Alemanha nazista ficaram presos. "Onde estão, nesta burguesia satisfeita e educada, os monstros da pintura e da sátira?", pergunta-se ele. O que se vê em seguida são retratos em claro-escuro sugerindo que a anomalia alemã, tão generosa de "gênios" e "monstros", teria sido produzida por um choque de contrários: de um lado, o racionalismo olímpico de Goethe, de outro, a irracionalidade dos SS; o rio Reno correndo para leste, e o Danúbio, para oeste; de dia, mulheres e homens pacatos no trabalho, de noite, bêbados solitários nas cervejarias.
O corolário ou conclusão moral desses pares de opostos já estava na introdução: "Vítimas e algozes possuem (...) o mesmo rosto e o mesmo destino, como num filme de Chaplin". E, com o ar complacente, o autor arremata sua reflexão misturando pensamento dialético e caridade cristã: "Contudo pode brotar um novo momento humano mesmo do desumano".
As melhores partes do livro não são essas, de pregação, mas aquelas em que Levi suspende o pendor ensaístico e descreve sem floreios as cenas e a gente que vê. Como quando vai a Dachau: "São as câmaras de gás. Nuas no cimento, com os furos da morte no teto. De lado, os fornos. Os dois fornos de tijolos que parecem extraordinariamente modestos e elementares para a sua tarefa".
Aqui Carlo Levi se aproxima de outro italiano ilustre, seu homônimo Primo Levi (1918-1987), que esteve preso em Auschwitz e deixou em várias obras ("É Isto um Homem?", "Afogados e Sobreviventes", "A Trégua") o testemunho terrível sobre o Holocausto.
Ou seja, a atmosfera densa e fantasmagórica de "A Dupla Noite das Tílias" de fato ganha mais força quanto menos seu autor se aventura a fazer deduções ou artigo de fé no futuro. Como já se viu, a tentativa de compreender a lógica da barbárie costuma resvalar ou na invectiva inócua ou na atitude benevolente que, no limite, busca justificar o injustificável.
Mas é que talvez a Alemanha de 58, dividida na "dupla noite" da Guerra Fria, não pudesse ser vista de frente como queria o pintor.


A Dupla Noite das Tílias La Doppia Notte dei Tigli
   
Autor: Carlo Levi
Tradução: Liliana Laganá
Editora: Berlendis & Vertecchia
Quanto: R$ 24 (140 págs.)




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